Depois de 12 agitados meses, nada mais natural do que tentar deixar as preocupações de lado e relaxar um pouco no final de ano. O difícil é que, para muitos, final de ano é sinônimo de gastos extras.
“Nessa época nós compramos presentes de Natal, investimos em lazer - planejamos uma viagem de Réveillon ou mesmo saímos mais de final de semana, enfim, nos permitimos mais”, observa Ricardo Teixeira, professor da FGV e especialista em gestão financeira, que conversou sobre o assunto com o Portal da Band.
E isso não está errado. Temos que nos permitir mesmo, afinal, o problema não é fruto dessas comprinhas ou passeios, mas sim da falta de planejamento financeiro.
A primeira atitude essencial a ser tomada é fazer aquele famoso raio-x das finanças. É preciso considerar as despesas que mais pesam no bolso durante todo o ano - habitação, alimentação, vestuário e transporte - e acrescentar os gastos com presentes e diversão.
“Existe o mito de que fazer planejamento financeiro é algo complexo, precisa entender de matemática, e não é. É simplesmente colocar no papel o que você gostaria de fazer, quanto de dinheiro tem e ver se vai dar certo”, pontua Carol Sandler, fundadora do site Finanças Feminina e autora do livro Detox das Compras. Contas
Você fez suas contas, viu que deu para comprar alguns presentes e ainda curtir uma praia em um fim de semana de dezembro? Ainda assim, fica difícil se animar pensando que o ano começa com contas para pagar.
Janeiro vem com as indesejáveis siglas: IPTU, imposto da casa ou apartamento, e IPVA, imposto do carro. Alguns também pagam os valores de seguros nessa época, o que novamente nos obriga a fazer contas.
“Toda vez é preciso verificar o que vale a pena fazer: pagar à vista com desconto ou parcelar [o valor dos impostos]. Tem ano em que o desconto é atrativo, e vale a pena tentar pagar tudo de uma vez. Para quem não consegue fazer isso, tem que ter organização para não se perder nas parcelas. Não adianta pegar um dinheiro, parcelar e gastar todo o resto com outras coisas. O dinheiro desses impostos, quando é parcelado, não pode ser mexido mais”, alerta o professor Ricardo Teixeira.
Para quem não consegue segurar um dinheirinho ali na conta, Teixeira aconselha aplicar o valor. Há duas vantagens neste caso: o dinheiro fica “retido” e você ainda consegue fazer essa quantia render um pouco.
Para aqueles que têm filho, também deve-se levar em conta gastos com matrícula, uniforme e material escolar. A dica é a mesma: separar um dinheiro para esses gastos e buscar opções em que o custo/benefício esteja em equilíbrio.
Dívidas
Agora vamos entrar em um tema que muita gente não gosta de falar, mas é perseguido o ano todo por esse assunto: as dívidas. Essas pendências financeiras tendem a se transformar em um bicho de sete cabeças pois somam-se a todos esses gastos que já citamos acima.
Sejam as parcelas de compras que fizemos ao longo do ano, ou então dívidas de crédito pessoal, cheque especial ou o rotativo do cartão de crédito, boa parte das famílias chega ao final de ano bem endividadas.
Segundo estudo divulgado pela Serasa Experian em outubro de 2017, o número de consumidores inadimplentes no país chegou a 61 milhões, 4,45% a mais do que em outubro de 2016, quando o número era de 58,4 milhões.
O ideal, sugere Carol Sandler, é que você não comprometa mais de 30% de seu salário com dívidas. “O que acontece é que muitos acabam comprometendo mais da metade do que ganham com essas parcelas”, conta ao Portal da Band.
Entre aqueles planejamentos que fazemos todo final de ano, quitar dívidas está entre os projetos futuros. “As pesquisas sempre mostram que, nessa época, a ideia é gastar o 13º, por exemplo, para sanar as dívidas. Mas aí chega fevereiro com levantamentos que revelam que a inadimplência subiu no mês de janeiro. Ou seja, a gente sabe o que é certo fazer, mas acaba não fazendo”, explica Carol Sandler.
O professor Ricardo Teixeira complementa e ressalta que a questão é sempre de planejamento. “Quando receber o 13º, tente sanar as dívidas que possuem uma taxa maior de juros. Se não conseguir pagar todas, quite o que der e procure um crédito pessoal mais barato. Para quem não recebe 13º, ou não consegue usar esse valor extra para isso, é possível fazer a portabilidade da dívida para um outro banco que ofereça uma solução melhor.”
Reserva para imprevistos
Até o momento falamos de gastos que sabemos que vamos ter, mas ninguém tem o dom de prever o futuro, não é mesmo? Infelizmente, imprevistos acontecem e muitas vezes nos momentos mais importunos.
É por isso que guardar dinheiro é fundamental; ainda assim, somente 62% dos brasileiros fazem isso, de acordo com um levantamento feito pela SPC Brasil e CNDL este ano. Mas, assim como equilibrar gastos, contas e dívidas, poupar também não tem uma fórmula mágica. Uma das dicas de Carol Sandler é tirar o dinheiro da frente de seus olhos, ou melhor, de perto do seu bolso.
“Se você não pode comprometer uma parte significativa do seu salário, comece com uma meta modesta. Pegue 5% do seu salário e já tire da conta corrente, jogue na poupança ou aplique em um fundo, no Tesouro Direto ou então compre um título. Dessa forma, você não poderá mais contar com aquele dinheiro, que ficará guardado e rendendo, e vai aprender a viver com um pouco menos.”
A especialista garante ainda que poupar e aprender a viver sem aquela porcentagem pequena de seu salário é uma questão de costume e te permite sair da “vulnerabilidade e dependência” que algumas vezes o dinheiro causa, principalmente quando um encanamento estourar ou se o carro quebrar, por exemplo. Gerando uma renda extra
No entanto, há meses que não tem jeito. Não dá para guardar dinheiro ou então a quantia dos juros que renderam do fundo que você aplicou não está sendo suficiente. Nessas horas, é sempre interessante pensar em alguma atividade que possa render uma graninha a mais.
Final de ano, por exemplo, é uma época boa para quem tem talento na cozinha preparar quitutes natalinos para vender na empresa ou na vizinhança. Neste vídeo, a especialista Carol Sandler dá ainda outras dicas:
A verdade é que ninguém gosta de viver uma vida de restrições e muitas coisas de boa qualidade custam mais caro. Sem planejamento financeiro, porém, fica difícil arcar com o básico para viver, quem dirá atingir metas pessoais ou nos proporcionar “pequenos agrados” vez ou outra?
“Entre as resoluções que pensamos no final de ano, o melhor a se fazer é começar a cuidar do dinheiro de forma saudável. Passamos o ano cuidando de muita coisa: corpo, saúde, família, mas nem sempre do bolso, e isso deve ser um hábito tão natural quanto usar o fio dental. Tem que ter cuidado, controle e real dimensão de seu valor: nem supervalorizá-lo, porque aí viveremos em uma neurose de que ele nunca é suficiente, e também não subestimá-lo, senão fica impossível realizar nossos sonhos”, recomenda Sandler.
E lembre-se: final de ano também é época de curtir. Sem isso, o cansaço e o estresse podem acarretar problemas de saúde, que mais para frente também vão mexer com as nossas finanças; em resumo, aproveitar sabendo gastar com consciência é um bom investimento em nós mesmos.
Jonathan Pereira do Prado deveria ter se apresentado ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de São José do Rio Preto, em São Paulo, em março. Cumprindo pena por furto, ele havia sido beneficiado por uma medida conhecida como saída temporária, um dos programas de reinserção social do sistema penitenciário brasileiro.
Como não retornou ao CPP, Jonathan se tornou foragido da Justiça. No dia 1º deste mês, ele combinou uma falsa carona com a jovem Kelly Cadamuro, que foi assaltada, violentada e morta com socos e estrangulamento.
A brutalidade do crime alimenta a polêmica que já existe em relação ao benefício das saídas temporárias.
Os números mostram, porém, que a maioria dos beneficiados cumpre as regras da medida que, segundo um especialista da área, pode, sim, ser positiva, mas é preciso aplicá-la de forma correta para que o resultado seja ainda mais eficaz no processo de ressocialização. Dados
Segundo dados divulgados pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), 96,11% dos beneficiados retornaram da saída de Páscoa em 2017; já o índice de retorno da saída de Dia das Mães deste ano foi de 96,74%.
Em um comparativo com os últimos dez anos, esta porcentagem continua alta. Em média, 94,51% dos detentos que saíram para a Páscoa retornaram para a penitenciária entre 2006 e 2016.
Na saída temporária de Dia das Mães, a média do índice de retorno neste mesmo período é de 95,14%.
Em ambos os casos, a porcentagem de beneficiados que não retornaram ao sistema prisional não chega a 5,2%. Pequenos testes
A saída temporária é concedida para presos em regime semiaberto, que tenham cumprido um sexto da pena (ou um quarto da pena em caso de reincidência) e apresentado bom comportamento dentro da penitenciária. São cinco saídas ao ano (Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças e Natal/Ano-Novo) que podem durar até sete dias.
Para Rogério Cury, especialista em Direito Penal, o programa pode funcionar para medir o progresso do detento em sua reinserção. “O benefício funciona como pequenos testes de convívio em sociedade. O preso sairá da cadeia um dia, então essa é uma forma gradual de ele ir ganhando liberdade”, define em conversa com o Portal da Band.
Com a saída temporária, explica Cury, o detento pode começar a montar uma estrutura para sua nova vida. “Ele pode, por exemplo, ir fazendo contatos para conseguir um emprego quando sair da cadeia ou buscar alguém que possa ajudá-lo ou dar apoio enquanto ele tenta se reerguer”, exemplificou.
O especialista diz ainda que o Estado “apenas encarcera”, e não dá “condições mínimas” para que o preso seja ressocializado. O benefício, portanto, poderia proporcionar alguma oportunidade de futuro. “É preciso ter cuidado com o processo de reinserção social; temos que tratar esse assunto de maneira adequada e rígida, porque sem condições dignas, ele vai voltar para a delinquência”, ressalta.
Os detentos que não retornam para a cadeia após a saída temporária automaticamente perdem o direito ao benefício e são reconduzidos ao regime fechado.
Já os números sobre reincidência criminal - quando um novo crime é cometido - são vagos. Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) reuniu várias pesquisas; uma delas mostra que a média nacional gira em torno de 70%, mas, devido a escassez de trabalhos de estudo sobre o tema, os dados ainda são imprecisos.
O advogado observa, no entanto, que independentemente da porcentagem, reincidentes criminais provam que o processo de reinserção de presos precisa ser aprimorado. Descrença
Quando um preso que ganha saída temporária volta a cometer delitos, ou então autores de crimes que causaram comoção nacional - como Suzane Richthofen ou Anna Carolina Jatobá - recebem esse benefício, ocorre uma descrença em sua eficácia.
A morte da jovem Kelly Cadamuro, que citamos no início da matéria, fez com que um abaixo-assinado virtual fosse criado contra a saída temporária, por exemplo. Até o fechamento desta reportagem, mais de 40 mil pessoas haviam assinado a petição.
Monitoramento
Para combater casos como o de Jonathan Pereira do Prado, o especialista Rogério Cury sugere mais fiscalização para o benefício, e não a extinção dele, visto que a porcentagem de retorno é muito maior e pode trazer bons resultados para a reinserção social.
“Toda saída temporária tem que ter monitoração eletrônica do preso através da tornozeleira. O problema é que muitos Estados brasileiros, inclusive em São Paulo - que possui a maior população carcerária do país - sequer concedem esse aparelho”. Entre os motivos deste problema estão falta de verba ou demora na licitação para solicitar o equipamento.
Foto: Akira Onuma/Ascom Susipe
Cury explica que, com a tornozeleira eletrônica, a polícia poderia facilmente encontrar o preso que não retornou da saída temporária e impedi-lo, dessa forma, de voltar a cometer crimes.
Gastos
O advogado sustenta ainda que investir em monitoramento é até uma solução mais barata. “O preso mal ressocializado, que volta a cometer crimes, gera gastos com operação policial para prendê-lo, delegado para investigá-lo, além do processo judicial do caso que envolve promotor, defensor público e juiz. O custo de um delito é sempre maior, e o Estado ainda paga indenização das vítimas de presos reincidentes.”
Isso sem contar o valor que o Estado voltará a desembolsar com o detento que retorna ao sistema carcerário. Em novembro do ano passado, durante um encontro de secretários de Segurança Pública, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, afirmou que um preso custa R$ 2,4 mil mensais (média nacional) - 13 vezes mais do que um estudante no Brasil.
Apesar da observação feita pela presidente do STF, a Câmara dos Deputados aprovou no dia 9 um projeto de lei que endurece as regras da saída temporária, ampliando ainda mais o tempo e o dinheiro gasto com o encarceramento.
Pelo texto aprovado, o juiz de execução penal só concederá a autorização se o detento tiver, além de bom comportamento, cumprido no mínimo um sexto da pena se for primário na condenação e metade da pena se for reincidente. A autorização judicial também não pode ser superior a quatro dias, podendo ser renovada por mais uma vez no ano.
“Dessa forma, vamos continuar rasgando dinheiro, porque seguimos não investindo em maneiras eficazes de colocar um preso em liberdade”, resume Cury.
Dandara sempre foi um nome forte muito antes do vídeo de uma sessão de tortura e violência circular pelas redes sociais. Era o nome de uma guerreira negra do Brasil colônia, esposa de Zumbi dos Palmares, que, diz a lenda, se matou para não voltar à dura realidade da escravidão.
Essa perseverança de viver como sonhou, e não como outros queriam que vivesse, também era uma das características de Dandara dos Santos. A cearense de 42 anos teve a coragem de viver como era mesmo sabendo dos riscos que corria por morar no país que mais mata transexuais no mundo.
Em 15 de fevereiro deste ano, Dandara entrou para as estatísticas que formam um panorama assustador: a cada 25 horas, uma pessoa morre vítima da homofobia no Brasil, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), que faz esse levantamento. O caso da cearense poderia ser mais um entre muitos que são ignorados, só não foi porque um vídeo em que a travesti, já coberta de sangue, aparece sendo espancada e xingada por um grupo de homens se tornou viral na internet.
Esse mesmo vídeo apareceu nas redes sociais de Francisca Ferreira, mãe de Dandara, que sem querer assistiu as últimas imagens da filha em vida. “Ele ficou lá, quieto, sem falar nada, esperando a morte”, lembra a aposentada, que chora. O relato é um dos pontos altos do documentário de curta-metragem Dandara, que estreia neste domingo (19), às 15h30, no Festival Mix Brasil. Haverá também sessão na terça-feira (21) às 19h30. Ambas acontecem no CCSP (Centro Cultural São Paulo), na capital paulista.
O filme deriva de uma grande reportagem que os jornalistas e diretores do curta, Fred Bottrel e Flávia Ayer, do jornal Estado de Minas, realizaram sobre o caso. Eles viajaram para Fortaleza, onde, um mês antes, Dandara havia sido morta a tiros após a sessão de tortura. O material que colheram, como depoimentos de familiares e amigos, “merecia um tratamento mais longevo”, na opinião de Fred. “A gente entendeu que a história de Dandara precisava ser contada de forma mais profunda, e também circular por outros públicos”, explica o diretor ao Portal da Band.
A dupla, que passou uma semana na capital cearense, pensou ainda em um jeito diferente de começar o filme. “Inserimos um conceito para que o espectador se coloque no lugar de Dandara. Posicionamos a câmera como plano subjetivo dentro do carrinho de mão [objeto para carregar a travesti após as agressões] e circulamos pelo mesmo local onde a violência toda aconteceu”, conta Fred. “É um exercício de empatia mesmo”, definiu.
Assista ao trailer:
A repercussão das imagens chocantes que antecederam a morte da cearense fez com que o governador do Estado, Camilo Santana, assinasse um decreto permitindo que transexuais possam usar o nome social na utilização de serviços públicos e também que trans mulheres, vítimas de violência, sejam atendidas nas Delegacias da Mulher do Ceará.
Além disso, a deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) apresentou um projeto batizado de Lei Dandara dos Santos, que propõe alteração do Código Penal para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o mesmo no rol de crimes hediondos. Apesar de tanta violência, a homofobia ainda não foi tipificada como crime no Brasil. Morreu por confiar em todo mundo
Para o irmão de Dandara, Ricardo Vasconcelos, essas mudanças que surgem aos poucos trazem um pouco de conforto à família. “Talvez ele tenha morrido para ajudar mais gente, principalmente aqueles que são excluídos, que sofrem preconceito”, diz em entrevista ao Portal da Band.
Ele ressalta que a irmã faz muita falta, principalmente para a mãe - que era muito ligada a ela, e que será lembrada como uma pessoa de boa índole, carinhosa, generosa e que, segundo ele, foi atraída para a própria execução por “confiar muito em todo mundo, a ponto de subir na garupa de uma moto sem imaginar que estava indo de encontro à morte”.
Ricardo, que trabalha como motorista da Uber, conta ainda que sempre cita o que aconteceu com a irmã - a quem ele se refere como irmão, quando algum passageiro fala sobre violência. “Eu falo com orgulho que meu irmão era travesti, um ser humano igual a todos nós, e que foi brutalmente assassinado por pessoas que não têm amor no coração.”
Dez pessoas acusadas de envolvimento com a execução de Dandara aguardam decisão judicial, que talvez saia em um júri popular que pode acontecer no ano que vem. Caso as qualificações do crime, como motivo fútil, impossibilidade de defesa e crueldade, sejam aceitas, os acusados podem receber pena de até 30 anos. O motociclista que levou a travesti até o local da tortura permanece foragido.
“A Dandara não está sozinha. É um caso que escancara a violência transfóbica que todos os dias mata transexuais no país. Se esse assunto não tiver a atenção que merece, isso nunca vai mudar”, pontua, por fim, o diretor do documentário.
As ruínas de Bento Rodrigues, distrito devastado na tragédia (Foto: Flávio Ribeiro/Vertices)
Cinco de novembro de 2015. Há exatos dois anos, a barragem de Fundão, localizada em um subdistrito da cidade histórica de Mariana (MG), se rompeu despejando um mar de lama que destruiu municípios, contaminou a importante bacia hidrográfica do Rio Doce, comprometeu toda a fauna e flora da região e matou 19 pessoas, sendo que uma delas permanece desaparecida até hoje.
Neste especial, o Portal da Band pôde concluir que a palavra que melhor resume esta tragédia ambiental - a maior do país - é “incerteza”. Não se sabe quando os indiciados pela tragédia vão pagar por esse crime; não dá para mensurar até que ponto a vida do Rio Doce está comprometida; é difícil precisar o quanto a economia de Mariana, tão dependente da mineração, vai sofrer com a queda de arrecadação. São os moradores das cidades atingidas, entretanto, que nesses dois anos mais sofreram com tantas dúvidas que surgem em busca de alguma resposta.
Tragédia continuada
Desde que a vida mudou drasticamente naquele 5 de novembro de 2015, Maria* sente que jamais deixou de viver a tragédia. “Ainda sentimos - e muito - as consequências do rompimento da barragem. Foram tantas perdas irreparáveis. Com a lama, morreram pessoas, histórias e sonhos”, conta a moradora da região, que conhecia três das vítimas fatais, inclusive aquela cujo corpo jamais foi encontrado.
Maria vive em uma comunidade próxima de Mariana, que não foi invadida pelos rejeitos, mas foi impactada financeiramente quando a Samarco, responsável pela barragem de Fundão, suspendeu contratos de funcionários (layoff) e colocou em prática um plano de demissão voluntária de 40% de seu quadro de empregados.
“A Samarco empregava, ainda, muitos funcionários terceirizados, que até agora não conseguiram outro trabalho”, detalha. “A fila do Sine (Sistema Nacional de Emprego) vive cheia, e não há vagas”. Maria diz ainda que, nesses dois anos, algumas empresas chegaram à cidade com oferta de empregos, mas, com tanta insegurança financeira, acabam ficando pouco tempo. “Quem pode está indo embora [de Mariana] para trabalhar em outro lugar.”
Prefeito Duarte Júnior em coletiva de imprensa dois dias após o desastre (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)
“É muito difícil”, resume Duarte Júnior (PPS), prefeito de Mariana, quando questionado pela reportagem sobre a situação do município. A arrecadação da cidade também sofreu com a suspensão das atividades da mineradora. A queda na receita chega a 34,62%. Com o desemprego na casa dos 23% (ante os 4% a 5% precedentes da tragédia), aumenta a procura por serviços sociais na cidade, que luta para mantê-los enquanto procura outra fonte de renda.
“Vivemos uma situação de dois extremos: ainda estamos recuperando uma cidade das consequências de uma tragédia envolvendo a mineração e, por outro lado, temos a necessidade do retorno dessa atividade para garantir emprego ao povo de Mariana.”
Após o desastre, um fundo foi criado para incentivar a contratação local na cidade. Gerido pela Fundação Renova, pelo Estado e com apoio da prefeitura, o fundo oferece aporte de R$ 60 milhões para empresas âncoras que tenham interesse em investir no município. Por enquanto, não teve muitos resultados. “Aguardamos ansiosos, para diminuir essa dependência [da mineração]”, acrescenta o prefeito.
Rio Doce
As dificuldades financeiras das cidades diretamente atingidas ou indiretamente impactadas pelo desastre se agravam também pela contaminação do Rio Doce. Um mar de lama com cerca de 32 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração chegou ao rio e percorreu 650 km até o oceano. Isso no dia da tragédia. Especialistas afirmam que resíduos remanescentes de Fundão ou que ficaram pelo caminho da lama continuam descendo até o Rio Doce toda vez que chove, por exemplo.
Pescador mostra peixes mortos na tragédia (Leonardo Merçon/Últimos Refúgios)
A grande quantidade de rejeitos matou peixes e outros animais do rio, aves que se alimentavam na bacia hidrográfica e plantas das regiões próximas. Prejudicou todo o setor pesqueiro, muito forte nos municípios por onde o Rio Doce passa, e também as plantações de pequenos agricultores.
Isso sem contar o prejuízo ocasionado no período em que o abastecimento das casas foi suspenso devido à contaminação. Até hoje, muitos moradores - quando podem - optam por comprar água mineral por não confiarem na qualidade da água que sai das torneiras. A água de abastecimento é segura, porque passa por tratamento. Mas a oscilação da qualidade do Rio Doce pode prejudicar o processo.
“Em épocas de chuva, a qualidade da água muda, e o tratamento também precisa ser modificado; é um problema diário”, explica Hernani Santana, coordenador de engenharia ambiental da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), que vem desenvolvendo projetos de pesquisa relacionados à avaliação de danos no rio.
O especialista também recorre à palavra incerteza para falar da situação da bacia hidrográfica. “Até hoje não temos como mensurar todos os impactos que o Rio Doce sofreu e vai sofrer”, afirma ao Portal da Band. Além da chuva, qualquer ação que cause um movimento mais brusco no rio interfere nesta avaliação. “Os metais depositados no fundo voltam à superfície, mudando de um dia para o outro nossa análise.”
Equipe faz o monitoramento da água do Rio Doce (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)
Entre os metais pesados, trazidos ao Rio Doce pela lama da Samarco, Hernani cita dados preocupantes. “Já encontramos mercúrio, alumínio e até arsênio, que em grandes quantidades é extremamente tóxico”, afirmou. O especialista não vê uma solução para o rio em curto prazo, principalmente neste momento do país em que investimentos para a ciência estão cada vez mais escassos. “Falta recurso, sim, muitas vezes ficamos ‘a ver navios’”, completa.
Impunidade
Enquanto os munícipes tentam solucionar e superar as consequências de uma tragédia que parece não ter fim, eles aguardam ainda respostas da Justiça. Dois anos depois, tampouco dá para saber quando isso vai acontecer.
Pelo desastre da barragem de Fundão, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 22 pessoas e as empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR. Dos 22 nomes, 21 são acusados pelo crime de homicídio qualificado com dolo eventual - quando se assume o risco de matar, entre elas o ex-diretor-presidente da Samarco Ricardo Vescovi. Em seu inquérito, a Polícia Federal já havia indiciado oito pessoas e as empresas Samarco, Vale e VogBR. Até agora, ninguém foi preso.
O MPF ainda ordenou que empresas paguem uma indenização no valor de R$ 155 bilhões. A celebração deste acordo também caminha a passos lentos. A Justiça postergou o prazo final para o dia 16 deste mês. O processo havia sido sustado por alegações de escutas telefônicas ilegais.
Foto aérea de distrito atingido pela lama de rejeitos (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)
Além disso, um levantamento feito pelo jornal espanhol El País mostrou que apenas 1% das multas por crime ambiental, aplicadas às empresas responsabilizadas pela tragédia, foi pago. Essas penalidades totalizam R$ 552 milhões. É importante destacar que uma das empresas envolvidas nos processos, a Vale, teve um lucro de R$ 7,14 bilhões no terceiro trimestre deste ano – o que representou uma alta de 288% com relação ao mesmo período do ano passado.
Nesses dois anos, as famílias contempladas com auxílios financeiros emergenciais tiveram ainda que recorrer ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para receber os valores acertados pela Samarco e suas acionistas. Primeiro foram 105 famílias; a Justiça ordenou que 85 delas recebam imediatamente o subsídio. Na segunda audiência de reconciliação, foram analisados pedidos de mais 30 famílias; dessas, as empresas reconheceram os direitos ao auxílio emergencial de 23.
Fundação Renova
Em março de 2016, a Samarco e suas acionistas, bem como os governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, além de autarquias, fundações e institutos, assinaram um termo para garantir proteção ambiental, recuperação dos municípios e indenização das famílias à luz do desastre.
Para organizar esses projetos, foi criada a Fundação Renova, que administra 42 programas diversos com um aporte total de R$ 11 bilhões previstos até 2030. É da alçada da fundação, por exemplo, reconstruir Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo (de Mariana) e Gesteira (de Barra Longa), distritos devastados com a lama da barragem.
“Esperamos que no início do primeiro trimestre ou quadrimestre do ano que vem já seja possível iniciar a construção das casas e dos equipamentos públicos, como campos de futebol, escolas, postos de saúde, igrejas, praças; a comunidade terá a seu dispor uma estrutura completa”, prevê Marcus Fuchs, gerente dos programas socioeconômicos em entrevista ao Portal da Band. Para cumprir o cronograma, fixado no primeiro semestre de 2019, o ritmo de trabalho será intensificado em 2018.
Reparação em propriedades rurais de Mariana (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)
Outros projetos, porém, ainda não estão tão bem definidos assim. É o caso do manejo de rejeitos. A Samarco ficou responsável por retirar uma parte da lama que ficou retida na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga, até dezembro de 2016. O cronograma atrasou. Sob a administração da Renova, mais de 900 mil metros cúbicos de rejeito foram retirados, mas ainda há muito trabalho a ser feito e com um agravante: ninguém sabe o que fazer com tanta lama.
“Estamos na fase de estudos sobre quais atividades esses rejeitos podem servir”, explica Fuchs. “Ainda não é conclusivo porque precisamos ter certeza de que o produto não vai representar nenhum risco à saúde. Tendo essa certificação, teríamos ainda que pensar na logística para transportar esse material.” Um dos possíveis usos da lama que está sendo cogitado é utilização na construção civil.
Hernani Santana, da Univale, está desenvolvendo um projeto para usar a decantação da lama que resta do tratamento da água para transformar em telhas ou cerâmicas. “Isso pode ser feito, mas mesmo assim a quantidade de rejeito ainda é muito grande. Daria para construir uma cidade inteira com tudo aquilo e ainda teria lama sobrando. Precisamos de mais pesquisas e projetos para encontrar uma solução”, completa.
Algumas iniciativas da fundação, entretanto, começam a apresentar resultados positivos. Segundo relatório divulgado pelo Ibama mês passado, dos 101 afluentes (mais oito ramificações que puderam ser acessadas) do Rio Doce, 89 não mais recebem lama de rejeitos. Vinte ainda apresentam processos que carregam lama para a bacia. A Renova reconheceu que nesses 20 afluentes as ações em curso não foram suficientes para conter esse carreamento, mas elas continuam sendo monitoradas. Virar a página
Ainda sentindo as consequências dois anos depois do maior desastre ambiental do país, e no aguardo de tempos melhores que tardam a chegar, os marinenses e outros munícipes atingidos não veem a hora de virar essa página. “Temos esperança de lembrar esse 5 de novembro somente como uma tragédia que aconteceu, e não porque não conseguimos superá-la”, desabafa Maria. “Nosso lugar é muito bom para viver; as pessoas são boas e humildes. Mesmo na dificuldade, a gente se ajuda quando precisa”, ressalta.
Duarte Júnior, que assumiu a prefeitura de Mariana meses antes do desastre, partilha da mesma opinião e reforça seu desejo por Justiça. “[As empresas responsáveis pelo rompimento da barragem] levaram bilhões de lucros de terra dos marinenses; eles não podem virar as costas para a população; têm que pagar o que devem”, pontua. “A lição foi dada: o homem precisa tomar muito cuidado com o meio ambiente e extrair suas riqueza com responsabilidade. Não queremos ser lembrados como a cidade da lama, mas sim como a bela Mariana, a primeira cidade de Minas Gerais.”
Documentário não foca na nostalgia, mas presta homenagem às lojas que marcaram gerações (Divulgação)
Serviços de streaming como Netflix e Vod (vídeo sob demanda), a televisão por assinatura e até a pirataria mudaram nossa forma de consumir filmes, séries, desenhos e documentários. Antes disso, porém, imperava um tipo de negócio que, da década de 1970 até meados dos anos 2000, era a única maneira de levar grandes obras e as novidades do audiovisual para o conforto do lar.
Foi com as videolocadoras que o diretor Alan Oliveira alimentou sua paixão pelo cinema e a relação com outros cinéfilos como ele. “Existia uma magia no ato de levar um filme para casa. Eu me lembro do cheiro das fitas, de você precisar rebobiná-las após assistir. Era uma experiência física, muito sensorial e também sociocultural. Tinha aquela conversa com o atendente, que dava sugestões de filmes, e com outros clientes com quem você poderia trocar dicas do que alugar”, lembra.
Quando surgiram os sinais de que esse império começava a ruir, Alan ficou interessado em registrar o movimento nas últimas videolocadoras que ainda resistiam, além de resgatar a "era de ouro" do mercado de aluguel de filmes.
“Eu sempre quis saber o que aconteceu com essas pessoas [donos de videolocadoras] e não tinha ideia, porque ninguém falava disso”, conta ao Portal da Band o diretor, que a partir desta curiosidade começou a produzir um documentário sobre o tema: CineMagia, em cartaz nos cinemas a partir da quinta-feira da próxima semana, dia 9 de novembro.
Confira o trailer:
O documentário, Alan Oliveira gosta de ressaltar, não é um filme nostálgico sobre esse modelo de negócio, mas, sim, uma homenagem aos 40 anos em que as locadoras transformaram o mercado do audiovisual em São Paulo. “A gente ‘não mata’ as videolocadoras, pelo contrário, nós as celebramos”, explica.
A primeira videolocadora
Na capital paulista, em 1976, surge a primeira loja do tipo. Desta data em diante, o setor ficou tão forte que assumiu função parecida com as de distribuidoras de filmes. “Não existiam as distribuidoras ainda, então muitos filmes eram copiados. Algumas vezes a qualidade da imagem era bem ruim, outras cópias nem legenda tinham; mesmo assim os clientes alugavam porque queriam assistir aos sucessos da época”, detalha Alan.
As locadoras que tinham mais dinheiro iam além e viajavam ao exterior para comprar os filmes, que posteriormente eram ‘lançados’ em suas filiais. Outras chegaram até mesmo a patrocinar a Fórmula 1, competição mais importante do automobilismo.
O documentário CineMagia também resgata a imponência das lojas. “Na década de 1980, os filmes ficavam dispostos em pilares com luzes de neon coloridas, o que era uma loucura para aquela ocasião. A Omni Vídeo, por exemplo, tinha um prédio na Avenida Faria Lima, que você subia de elevador de tão grande que era”, conta o diretor. Vale citar ainda a rede norte-americana Blockbuster, que tinha lojas espalhadas por toda a cidade, e a tradicional 2001 Video, que fechou suas últimas unidades físicas no final de 2015. Mais de 200 horas de material
Resgatar uma história de quatro décadas não foi tarefa fácil. As primeiras pesquisas para produzir o documentário foram praticamente infrutíferas, já que não há muito sobre o assunto na internet. O trabalho começou a dar resultados com o garimpo de sebos. “Encontramos revistas antigas que nos davam pistas sobre os antigos donos de videolocadoras em São Paulo”, diz Alan.
Além dos antigos donos desse comércio, o filme traz depoimentos de clientes, distribuidores, jornalistas e críticos de cinema renomados, como Rubens Ewald Filho e Christian Petermann, que morreu ano passado. “São pedaços de memórias que compõem um raio-x do que foi esse mercado”, resume o cineasta.
Com os relatos, os registros das atividades das últimas videolocadoras e imagens de arquivo para falar do começo desse império já são mais de 200 horas de material bruto. Todo esse conteúdo também vai virar série de televisão e um livro, ambos sem data de lançamento.
Novas gerações
Para Alan Oliveira, celebrar o fenômeno que foram as videolocadoras não tira a importância das ferramentas de hoje. “A relação que a geração de hoje tem com a Netflix é diferente, mas isso não quer dizer que é ruim. Se antes era custoso achar um filme, tinha que sair de casa, procurar nas prateleiras ou esperar alguém devolver, agora é só apertar um botão e, se não gostar, tem outros títulos à disposição.”
Quarenta anos após o boom das videolocadoras, duas lojas continuam de portas abertas em São Paulo: uma no prédio do Copan, no centro da capital, e outra no bairro Sapopemba, na Zona Leste. Tal resistência é uma prova de que a paixão pelo audiovisual se transforma, mas jamais se extingue.
Uma cruz cristã é vista no plenário do STF à direita; no centro, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que escolas públicas podem ministrar aulas de ensino religioso confessional – aquele que permite que os professores promovam as crenças de uma religião sem precisar citar outras ou mesmo nenhuma, como é o caso do ateísmo ou do agnosticismo.
Por seis votos contra cinco, a Suprema Corte rejeitou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade da Procuradoria-Geral da República (PGR) que pedia, com base na laicidade do Estado, a oferta do ensino religioso não confessional – que abrange diversas crenças, sem priorizar uma especificamente – na rede pública de ensino.
Sob o argumento de que o Judiciário não pode interferir nas questões religiosas pessoais, incluindo a esfera pública, o STF deu aval para que Estados e Municípios decidam se o conteúdo a ser dado será confessional ou não confessional. A oferta dessa aula é obrigatória, mas serão facultativas, ou seja, o aluno pode não participar sem que isso gere um prejuízo em seu currículo escolar.
A decisão da Corte gerou uma repercussão enorme entre educadores e representantes das mais variadas religiões. Os especialistas estão preocupados, principalmente com o aumento da intolerância contra crenças minoritárias e também com o que será feito com o aluno que desejar não participar das aulas de ensino religioso baseada em uma única crença.
Segundo o levantamento da Prova Brasil, questionário aplicado pelo Ministério da Educação para estudantes e professores da rede pública, 55% dos docentes apontam que não há outra atividade prevista para os alunos que optam por não participar das aulas de religião.
Para Sérgio Junqueira, integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Religião, o aluno pode ter problemas sociais ou sentir-se excluído por não participar das mesmas atividades que seus colegas. Além disso, o especialista também aponta questões delicadas na contratação de professores ou representantes religiosos que irão aplicar este conteúdo.
“O Estado não vai pagar um professor para ensinar religião; não há dinheiro para isso”, aponta o especialista, que também destaca o problema da formação específica. O mais recente levantamento sobre o assunto mostrou que menos da metade dos docentes do ensino fundamental tem licenciatura nas disciplinas que lecionam.
“É preciso, então, fazer alianças com lideranças religiosas, mas não são todas que poderão arcar com isso. Temos que considerar também que um líder religioso não necessariamente é um bom professor. Pensar como aplicar um conteúdo não é tão simples assim; sem um cuidado com a informação que está sendo passada, podemos esbarrar no preconceito”, alerta.
Intolerância religiosa
Professor e antropólogo da Universidade de São Paulo (USP), Vagner Gonçalves da Silva estuda a etnografia das populações afro-brasileiras e, durante duas décadas, fez um monitoramento do aumento dos casos de intolerância contra religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé.
Vagner acredita que com a decisão do STF, ataques do tipo serão ainda mais frequentes. Para ele, a Suprema Corte ignorou a realidade do Brasil. “[Na virada dos séculos 19 e 20] as religiões de matriz africana eram criminalizadas no Brasil; tinha, inclusive, invasão de polícia nos terreiros, e pais de santo enquadrados”, lembra.
“Somente em meados do século 20, essas religiões conseguiram ‘respirar’ no momento em que a classe artística aderiu à crença e o movimento negro se fortaleceu. É uma conquista recente, então é preciso ter cuidado com isso. O que o Estado deveria fazer agora é garantir a liberdade de culto, prevista na Constituição, e impedir que um grupo religioso vilipendie os símbolos sagrados de outros.”
O antropólogo menciona ataques recentes como à menina Kayllane Campos, 11 anos, atingida na testa por uma pedra em 2015 ao sair de um culto de candomblé; a invasão a um terreiro em Jundiaí, no interior de São Paulo, na qual criminosos quebraram imagens sagradas e colocaram fogo no local dois dias antes de sair a decisão do STF; e a ação na qual traficantes de drogas, que se dizem evangélicos, obrigaram uma mãe de santo a destruir seu terreiro sob a mira de armas no mês passado.
Para o especialista, a laicidade do Estado não é respeitada, e o julgamento do STF é uma prova disso. Também partilha da mesma opinião Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que estão entre os 8% da população que se dizem "sem religião", segundo o Censo 2010.
“[O desrespeito à laicidade] é representado com a quantidade de símbolos religiosos em repartições pública, incluindo o STF, e muitas pessoas não percebem isso”, exemplifica Daniel, que já acionou o Ministério Público para que as imagens fossem retiradas. “O fato de essas imagens passarem despercebidas é sintomática, mostra que o domínio de uma única religião já está naturalizado no país, e isso vai contra o Estado laico.”
Assim como o antropólogo Vagner, Daniel também teme um aumento do preconceito contra ateus e agnósticos, que, segundo ele, já atinge níveis preocupantes. “A Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa perguntando às pessoas o que elas pensam sobre grupos específicos. Esse levantamento mostrou que 39% dos entrevistados rejeitam pessoas que não acreditam em Deus [este índice chega a 51% na região Norte do Brasil]. Nós também recebemos muitos relatos de pessoas que foram expulsas de casa, perderam emprego ou terminaram relacionamentos só pelo fato de não terem uma religião.”
Católicos e evangélicos
Os especialistas entrevistados acreditam que o ensino religioso irá privilegiar a crença católica ou evangélica. Segundo o Censo 2010 - última pesquisa feita pelo IBGE acerca da questão, os católicos ainda são a maioria no Brasil, ainda que este índice tenha caído de 73,6% para 64,6% em dez anos, e os evangélicos cresceram de 15,4% para 22,2% neste mesmo período.
Nesta semana, a prefeitura de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, já notificou que irá incluir a reza cristã do Pai Nosso nas escolas do município. Os alunos que não quiserem participar da oração precisam apresentar uma declaração assinada pelos responsáveis.
Presidente da Comissão para Cultura e Educação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom João Justino defende um diálogo entre moradores dos municípios, professores e estudantes para que se chegue a uma conclusão sobre qual crença será ministrada nas escolas e seu conteúdo.
O arcebispo ainda defende um ensino religioso plural que respeite as demais. “Nós vemos [a decisão do STF] como uma oportunidade de falar sobre intolerância religiosa nas escolas e trabalhar a importância do respeito com as outras tradições religiosas.”
Dom Justino ressalta que a Suprema Corte atuou de acordo com a Constituição, que estabelece aulas de religião na rede de ensino pública. “Algumas pessoas não entenderam e estão achando que a Igreja Católica está exigindo um ensino católico; o que queremos, na verdade, é que o ensino seja de acordo com a demanda dos estudantes, permitindo que aqueles que já fizeram uma opção religiosa, geralmente ligada ao histórico familiar, tenham chances de aprofundar esse conhecimento. Para nós, a apresentação histórica das muitas expressões religiosas poderá ser feita no conteúdo de outras matérias.”
Sérgio Junqueira, do Grupo de Pesquisa Educação e Religião, concorda que outras matérias vão abordar, de forma antropológica, a importância e a influência da religião no mundo, mas ele aposta em modelos que garantiriam melhor essa pluralidade de ensino. “Temos um projeto em Curitiba que chama Trilhas do Sagrado. Nele, as crianças da rede municipal de ensino têm a oportunidades de visitar templos budistas, terreiros de umbanda, igrejas cristãs, mesquitas islâmicas, entre outros.”
“Ensinar as crenças de uma religião cabe à família; à escola fica o papel de ajudar o estudante a entender a estrutura e as manifestações religiosas a fim de desmontar preconceitos”, conclui.
Kim Jong-un observa o lançamento de um míssil em foto deste ano (KCNA)
Em meio a uma ameaça de guerra nuclear entre Estados Unidos e Coreia do Norte, é grande o interesse pelo misterioso país asiático, comandado pelo ditador Kim Jong-un, que insiste em manter as suas portas fechadas.
A história do país, um território estratégico disputado por várias potências como Japão, China, Rússia e Estados Unidos, é envolto de enigmas, relatos de violação de direitos humanos básicos, tensão e muitos boatos.
É difícil saber o que é verdade e o que é exagero por lá. Ainda assim, separamos alguns fatos curiosos, outros assustadores, divulgados por organizações que estudam o país, pela imprensa estatal local e pelos desertores – as testemunhas mais confiáveis de uma nação que permanece isolada em um mundo cada vez mais globalizado.
Sequestro ousado
Imaginem que o Brasil, querendo um nome de peso para a seleção de futebol, decide arquitetar um plano secreto para sequestrar o jogador Lionel Messi, da Argentina. Parece absurdo, mas algo desta magnitude realmente aconteceu na Coreia do Norte durante a década de 60. Fanático por cinema, o então líder Kim Jong-il quis melhorar a produção de filmes do país, que era lastimável na ocasião. Com profissionais sem muito conhecimento na área e pouca remuneração, a saída elaborada por Jong-il foi “importar” mão de obra de qualidade através de um engenhoso sequestro.
Os escolhidos foram o cineasta Shin Sang-ok e a atriz Choi Eun-hee, que quando casados formaram o casal um celebridades famoso e amado na vizinha Coreia do Sul. A primeira a ser atraída para a emboscada foi Choi. Encantada com uma proposta de trabalho, ela viajou a Hong Kong, onde foi surpreendida por homens do regime de Jong-il. Eles a sedaram e a colocaram em um barco rumo à Coreia do Norte. Shin fez o mesmo trajeto, em busca da ex-mulher, e teve o mesmo destino.
Os dois ficaram confinados em mansões-cativeiro, obrigados a estudar a filosofia do país e, mais tarde, trabalhar na criação de filmes para Kim Jong-il. O casal se manteve obediente às ordens rígidas do ditador para ganhar sua confiança. Com o tempo, começaram a filmar em outros países comunistas e, depois, conseguiram convencer o líder a construir um estúdio de cinema em Viena, na Áustria. Lá, elaboraram um plano de fuga e pediram refúgio à embaixada dos Estados Unidos. A história surpreendente de Shin e Choi é contada no livro Uma Produção Kim Jong-il, de Paul Ficher, e no documentário Os Amantes e o Déspota, de Ross Adam e Robert Cannan.
Kim Jong-il, Choi Eun-hee e Shin Sang-ok Kim Jong-il, Choi Eun-hee e Shin Sang-ok (IMDB)
Godzilla norte-coreano
Uma das produções notórias que o cineasta sequestrado Shin Sang-ok realizou na Coreia do Norte foi Pulgasari, o Comedor de Ferro, de 1985. Um ano antes, o mundo capitalista se rendeu ao sucesso de O Retorno de Godzilla, filme sobre o famoso lagarto gigante que aterroriza o Japão. Mesmo vivendo em um país isolado, Kim Jong-il tinha lá seus privilégios. Cinéfilo de carteirinha, ele chegou a montar uma rede de contrabando para assistir a filmes “proibidos” em seu país. É muito provável que ele tenha assistido à série Godzilla e ficado encantado.
Foi assim que surgiu a ideia de um Godzilla norte-coreano. A história de Pulgasari se passa em tempos medievais, em uma região oprimida por um governo ganancioso. O protagonista é preso por infringir as ordens desse governo e, na prisão, cria um monstrinho com o arroz de sua refeição. A criatura ganha vida quando é tocada pelo sangue de sua filha. Aliado dos camponeses, Pulgasari destrói o exército e acaba com o regime distópico.
Mesmo sendo um filme “trash”, a produção foi um sucesso na Coreia do Norte. Desertores juram que os boatos de pessoas que morreram nas enormes filas que tentavam assistir Pulgasari são verdadeiros. Fora do país, o filme se tornou um clássico cult. Confira o trailer:
Para quem ficou curioso, é possível assistir ao filme inteiro, com legendas em inglês, neste link.
A banda pop das militares de minissaia
Não é só de filme trash que vive a Coreia do Norte. Na busca por um “ar mais moderno”, o país criou a sua própria banda pop. Formado por 20 musicistas talentosas, que cantam e tocam vários instrumentos, o grupo Moranbong é um sucesso na pátria mais isolada do mundo.
Não espere um repertório com músicas de Madonna, Beyoncé ou Lady Gaga. A banda Moranbong se apresenta apenas com canções que fazem reverência aos líderes norte-coreanos e as tradições e cultura do país. Ainda assim, o ritmo empolga, indo do rock ao pop e até à música eletrônica.
Os shows do grupo são uma atração à parte. A começar pelo figurino das artistas, que normalmente usam roupas militares, mas sempre com minissaias e cortes de cabelo moderno para atrair um público majoritariamente masculino. O próprio atual líder do país, Kim Jong-un, costuma a marcar presença em eventos com a banda.
Já no telão que é sempre montado no palco, são exibidas imagens de treinamentos militares e lançamento de foguetes – uma paixão nacional. Os líderes da Coreia do Norte também aparecem no telão, para o delírio da plateia, que sempre fica de pé e aplaude com um entusiasmo que beira o exagero.
Grande show de ginástica e arte
No grande teatro que se tornou a Coreia do Norte, chama atenção outro evento magistral que acaba atraindo turistas para o país. O Festival das Grandes Massas e Performances Artísticas e Ginásticas Arirang, também conhecido como Festival Arirang, é uma grande festa anual que acontece no principal estádio da capital Pyongyang entre os meses de agosto e setembro.
A ideia do festival foi inspirada na canção que batiza o evento, Arirang. A música, tradicional da cultura coreana, conta a história de um casal que é separado por uma figura maquiavélica - para alguns, a canção simboliza a divisão da Coreia, ocorrida após a guerra de 1950. Há também, claro, muitas referências à dinastia Kim e a força militar norte-coreana.
O show consiste em performances e danças, com coreografias muito bem ensaiadas e impressionantes para um estádio lotado que acompanha anualmente a atração. O evento é levado extremamente a sério pelos artistas, dançarinos e ginastas que participam do festival. Selecionados a partir dos cinco anos de idade, eles treinam por meses, e muitos passam a vida toda se dedicando às atrações desse show até se aposentarem.
Em 2007, os Jogos de Massa de Arirang foram reconhecidos pela Guinness World Records como o maior evento desse tipo. Veja alguns destaques:
Unicórnio de Kim Jong-un
Ser uma nação tão isolada tem lá o seu preço. Qualquer história - por mais absurda que seja - que ouvimos relacionada à Coreia do Norte hesitamos a duvidar, porque é impossível confirmar as informações de um país que proíbe agências internacionais em seu solo e censura a sua imprensa.
Mas, às vezes, a criatividade para mentiras é tão grande, que beira o cômico. Em 2012, para reafirmar a superioridade norte-coreana que os líderes do país gostam de pregar por aí, surgiu a “notícia” de que tocas de unicórnio – cavalos mitológicos com chifre na testa - foram encontradas pelo Instituto de História da Academia de Ciências Sociais da Coreia do Norte.
Na época, a história viralizou e veículos de mundo inteiro noticiaram a “descoberta” com muito bom humor. Mais tarde, descobriu-se que tudo não passou de um erro de tradução da própria Korean Central News Agency (KCNA), imprensa oficial do regime. No relatório em inglês, a agência confundiu o nome do animal. Na verdade, os norte-coreanos encontraram tocas de Qilin, criatura mitológica chinesa que tem corpo de cervo e cabeça de dragão; algo bem mais verossímil do que um unicórnio, não é mesmo?
Kim Jong-un aparece montado em um unicórnio em montagem da internet (Reprodução)
Presidente morto e filhos superpoderosos
Na Coreia do Norte, os membros da dinastia Kim são tão queridos que praticamente são tratados como verdadeiras divindades no país. Prova desse amor todo chocou o mundo em 1994, ano em que o fundador do regime, Kim Il-sung, morreu. Na época, imagens do velório rodaram o mundo e chamaram atenção devido a enorme quantidade de norte-coreano nas ruas chorando desesperadamente (e de forma bem exagerada) a perda do líder.
Por causa dessa admiração toda, mesmo após sua morte, a Constituição do país o manteve no Executivo com o cargo de “Presidente Eterno da Coreia do Norte”. Seu corpo permanece conservado no Palácio do Sol de Kumsusan e é muito visitado por norte-coreanos e turistas.
Seu filho e sucessor, Kim Jong-il (o apaixonado por cinema que bolou aquele sequestro bem ousado) morreu em 2011 e a comoção nas ruas de Pyongyang foi ainda mais surpreendente porque nevava forte no dia do velório.
Toda a dinastia é dotada de superpoderes para justificar tamanho culto aos líderes. Jong-il, por exemplo, já andava e falava com poucos meses de vida. Aos três anos, ele evocou um furacão no inimigo Japão só de borrar a ilha em um mapa-múndi com tinta preta (!). Além disso, ele ainda teve tempo e agilidade para escrever seis óperas em dois anos e para publicar 1,5 mil livros durante os três anos em que cursou o ensino superior. E você aí reclamando do TCC, hein?
Já o atual ditador do país, Kim Jong-un, também tem dotes de invejar. Dizem os livros escolares da Coreia do Norte, que ensinam sobre a vida de seus líderes, que Jong-un já dirigia com três anos de idade e, aos nove, ganhou uma corrida de iate. Como se isso não bastasse, ele também é um artista e compositor musical super talentoso. Com tantas virtudes, não é a toa que os norte-coreanos enfrentam até as águas geladas para tentar chegar perto dele:
O calendário cujo ano é 106
A idolatria pela dinastia Kim é tão excepcional que os norte-coreanos adotaram um calendário próprio que tem início com o nascimento do fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung.
O anuário começou a ser implantado em 1997 no dia em que se celebra a independência do país. A partir deste dia, os veículos de comunicação, a rede de transporte público e até os cartórios, nos documentos oficiais, passaram a utilizar esse sistema.
Aqui no Brasil, e em muitos outros países do mundo, estamos em 2017 segundo o calendário que usamos, o gregoriano. Para os norte-coreanos, no entanto, o ano é 106. Esta foto de um calendário da Coreia do Norte mostra o ano 99 em destaque, equivalente ao ano de 2010, que também é marcado na folha para que os norte-coreanos não fiquem tão perdidos no tempo.
Wikimedia Commons
Censura e imprensa controlada
Muitas das histórias absurdas da Coreia do Norte nem teriam começado se houvesse liberdade de imprensa no país. Desertores contam que há apenas um canal de notícias por lá e, por razões óbvias, é totalmente controlado pelo Estado.
Um desses noticiários tornou famosa internacionalmente uma âncora de TV por causa da forma empolgada que ela falava sobre os líderes e as conquistas militares do país. Ri Chun-hee, que já está aposentada, até chorou ao vivo quando anunciou a morte de Kim Jong-il. Confira:
A censura é tanta que até atravessa fronteiras chegando ao inimigo mais odiado dos norte-coreanos: os Estados Unidos. Você se lembra das ameaças feitas pelo regime de Jong-un nas vésperas do lançamento do filme A Entrevista? A produção hollywoodiana conta a história de um plano da CIA para assassinar o ditador norte-coreano com a ajuda de um jornalista de celebridades que viaja até o país para entrevistá-lo. Apesar de ser uma sátira, o filme irritou tanto que a distribuidora Sony Pictures sofreu um ataque cibernético. Também houve ameaças de atentado, fazendo com que a pré-estreia em Nova York fosse cancelada.
Para quem ficou curioso, aqui está o trailer do filme:
Campos de trabalho forçado e execuções
Aliado à censura para sustentar a engrenagem ditatorial que é a Coreia do Norte, o governo mantém – embora sempre negue – campos de trabalho forçado em várias partes de seu território. Ali, muitos prisioneiros morrem de tanto trabalhar, de fome, de frio ou são executados por algum motivo por vezes supérfluo.
Grupos de direitos humanos estimam que existam seis campos de concentração, sendo que o maior deles tem uma área do tamanho da cidade de Los Angeles, com cerca de 200 mil prisioneiros. A negação do regime é confrontada com imagens do Google Earth que mostram esses campos segundo as coordenadas de desertores.
Imagens do Google Earth mostram campos de trabalho forçado no país (Anistia Internacional)
Pelas leis norte-coreanas, alguns crimes, como traição à pátria, são atribuídos a três gerações. Há casos em que filhos e netos também são presos ou mesmo nascem dentro de um campo de concentração. Foi o que aconteceu com Shin Dong-hyuk, um dos desertores mais famosos que conseguiu o feito raro de escapar de um campo com segurança rígida.
Shin carrega um pouco de sua história triste, contada no livro Fuga do Campo 14, de Blaine Harden, no corpo. Ele tem cicatrizes nas costas e nas nádegas e marcas de um gancho usado para suspendê-lo por cima de chamas em uma sessão de tortura. Ele também não tem parte do dedo média de sua mão direita, cortada por um dos guardas do campo após ter derrubado uma máquina de costura. Turismo na Coreia do Norte (sim, é possível)
Existem alguns pacotes turísticos para a Coreia do Norte. Mas, após tudo que vimos até aqui, fica claro que não é uma viagem como qualquer outra. Para começar, você não tem liberdade para sair mochilando pelo país. Tudo é controlado pelo Estado, desde o momento que você desembarca no aeroporto de Pyongyang até o instante em que você deixa o solo norte-coreano.
A empresa estatal norte-coreana Ryohaengsa realiza passeios pela capital. Cada grupo de turista é acompanhado por guias do regime e os pontos turísticos são selecionados também por eles. As fotos que você tira com seu celular e câmera fotográfica são vistoriadas. Há hotéis específicos nos quais os estrangeiros podem se hospedar e em hipótese alguma lhe dão permissão para deixar o local sem um guia.
As estátuas de Kim Il-sung e Kim Jong-il é uma das atrações turísticas de Pyongyang (KCNA)
É bom ficar atento para não desrespeitar nenhuma regra que a agência de viagem e os guias impuserem. Vale lembrar o caso do norte-americano Otto Warmbier, que viajou ao país em 2016 e foi preso sob a acusação de roubar um cartaz de propaganda comunista. Warmbier recebeu uma pena de 15 anos de prisão, mas foi extraditado para os Estados Unidos este ano em estado de coma. Por razões desconhecidas, ele morreu no mês de junho.
Pilhas de ossos se acumulam em ossário subterrâneo (Foto: Eliana Vendramini)
Quinze mil ossadas, em média, estão empilhadas em sacos dentro de um grande ossário, que fica fechado ao público, no Cemitério Municipal Dom Bosco, em Perus, Zona Norte da cidade de São Paulo.
Quem passa por ali – seja para visitar familiares ou conhecidos lá enterrados, ou mesmo para fazer uma caminhada pela área verde urbana de 254 mil m² - nem imagina o que há no subterrâneo de um galpão localizado próximo dos muros do cemitério, que também guardam ossadas, mas apenas para aqueles que podem pagar uma taxa R$ 83,77 a cada cinco anos para ali mantê-los.
No grande ossário subterrâneo, estão armazenados restos mortais de pessoas cujos familiares não puderam pagar a taxa, uma realidade para muitos, já que o cemitério realiza sepultamento gratuito para famílias de baixa renda. Algumas dessas ossadas, entretanto, são um retrato do tratamento que o Estado de São Paulo dá a seus mortos.
Visão mais geral do ossário subterrâneo (Foto: Eliana Vendramini)
Destino dos mortos
Quando uma pessoa morre em São Paulo, há dois órgãos que trabalham em sua identificação: o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), quando a morte é natural, e o Instituto Médico Legal (IML), quando a morte é considerada suspeita e precisa ser investigada.
Nenhum desses órgãos, porém, notifica os familiares mesmo quando o cadáver possui documentos ou características possíveis para reconhecê-lo, como tatuagens, cicatrizes, uma prótese ou algo do tipo. O corpo é enterrado como não reclamado sem que seus parentes, muitas vezes, tenham conhecimento.
Em alguns casos, os familiares estão em busca daquela pessoa, registraram boletim de ocorrência de seu desaparecimento e aguardam uma resposta das autoridades. Os dados da Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, não são cruzados com os dados do SVO ou do IML pelo fato de não existir um banco de dados simples que unifique essas informações.
O trabalho de localizar um ente querido, levando em consideração que ele possa ter falecido, fica nas mãos da própria pessoa que por ele procura. Além da vulnerabilidade comum do momento difícil, o trabalho se mostra humanamente impossível.
Existem 72 unidades do Instituto Médico Legal no Estado de São Paulo. O prazo mínimo que o IML dá para que um corpo seja reclamado é de 72 horas; levando isso em conta, é preciso que se visite - a cada hora, durante três dias - todas as unidades do IML em um território de 248.209 km². Também é preciso consultar o Serviço de Verificação de Óbito, que muitos desconhecem a existência.
"Redesaparecimento"
A bola de neve que se tornou a questão ganhou até um neologismo. "Redesaparecimento" é quando o Estado encontra um desaparecido, mas "some" novamente com ele ao enterrá-lo sem que as pessoas que o procuram tenham ciência disso.
O termo aparece na ação que o Ministério Público está movendo desde o mês de maio deste ano para solicitar um banco de dados que reúna informações do próprio MP, do IML, do SVO, da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Secretaria da Saúde e do Instituto de Identificação.
A promotora Eliana Vendramini, que coordena, dentro do MP, o Plid - Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, acredita que a implantação desse banco de dados – algo simples e fácil de fazer, segundo ela – vai aliviar o drama de familiares que passam, em alguns casos, até anos procurando por parentes em São Paulo.
"Tratam esse tema como se não fosse algo importante", critica Vendramini, que recebeu a reportagem do Portal da Band no Plid. "O Estado, no entanto, precisa começar a investir nisso, porque esse problema pode acontecer com qualquer um de nós. Eu posso morrer sozinha em casa de algum problema no coração, ir para o SVO, ser enterrada em Perus e minha família não ser avisada disso", exemplificou.
Um caso parecido com essa hipotética situação aconteceu de fato na Zona Sul de São Paulo em 2015. João Silva*, na casa dos 40 anos, teve um infarto em via pública. Seu corpo foi periciado no IML, que obteve sua identidade por meio das digitais, mas não avisou a família, que já havia registrado boletim de ocorrência de seu desaparecimento. Os dados não foram cruzados e João foi enterrado em Perus. Somente um mês depois a família tomou conhecimento, pelo Plid, do que havia acontecido com ele.
Covas para inumação de indigentes e não reclamados (Foto: Band)
Banco de dados
Vendramini está baseando a ação em uma lei estadual de 2014, do deputado Hamilton Pereira (PT), que exige a criação de um banco de dados para ajudar na localização de pessoas desaparecidas. "A implementação é bem simples, o que seria mais complexo é a capacitação dos funcionários que vão preencher os dados. É preciso ter muitas informações, como cor da pele, se tem tatuagens, as roupas, fotografias, enfim. Depois disso, o próprio banco faria esse cruzamento de dados sozinho."
A partir do trabalho do Plid, o IML começou a desenvolver, em 2015, um banco de dados que reúne informações sobre os corpos autopsiados. Em nota, a Superintendência da Polícia Técnico-Científica - que responde pelo IML, afirmou que todas as suas unidades estão integradas no programa e que há profissionais treinados para usá-lo.
A promotora de Justiça, porém, alerta que os dados que chegam até o DHPP não são examinados pela delegacia porque não há funcionário para fazer essa análise. "Eu soube de um atraso de mais de um mês para abrir as informações que o IML repassa diariamente."
A Superintendência da Polícia Técnico-Científica respondeu que, desde a implementação do sistema, houve dez mil acessos por parte de policiais civis e técnico-científicos e que o programa será ampliado para as outras unidades da Polícia Civil do Estado. Corrida contra o tempo
Enquanto os órgãos que tratam das mortes no Estado não se comunicam de maneira efetiva, muitas famílias continuam sem respostas para suas dúvidas. Desde 2000, os familiares de José Souza* buscam informações sobre seu paradeiro. Há 15 anos, os documentos de José foram encontrados junto ao corpo de uma vítima de afogamento, já em avançado estágio de decomposição. Os laudos de DNA foram inconclusivos e um exame antropológico da ossada jamais foi realizado.
Durante todo esse período, a família paga um ossário particular no cemitério de Perus para que os restos mortais não sejam levados ao subterrâneo do ossário geral, dificultando ainda mais uma possível identificação futura.
Ossários particulares do Cemitério Dom Bosco (Foto: Band)
"Com o passar dos anos, a ossada pode se degradar, ser reduzida a pequenos fragmentos ou mesmo mofar; esses fatores podem, sim, interferir na análise", explica o antropólogo forense Paulo Tieppo.
O Serviço Funerário de São Paulo, que é de responsabilidade da prefeitura da cidade, confirmou as informações sobre o ossário geral do cemitério Dom Bosco, que sepulta, em média, 10 corpos de pessoas não reclamadas por semana.
Em nota, o órgão disse ainda que “todos os sepultamentos de pessoas reclamadas ou não reclamadas constam nos livros de registro do cemitério”. As fotografias do local mostram, porém, que as etiquetas que trazem algumas informações sobre aqueles restos mortais também se degradam com o tempo.
No local, há, inclusive, etiquetas que se desprenderam do saco com ossadas e estão no chão, já sem possibilidades de saber a qual ossada aquelas informações se referem.
Saco com ossos já sem a identificação e etiqueta com informações de restos mortais no chão (Foto: Eliana Vendramini)
Quase dois mil não reclamados
O problema, que começa na administração estadual e atinge a municipal, fica mais palpável quando vemos, em números, a sua dimensão. Desde 2014, o Serviço Funerário publica em seu site, e também no Diário Oficial do Município, a lista das pessoas sepultadas cujos corpos foram encaminhados pelo IML e SVO para colaborar na localização de pessoas desaparecidas.
No serviço, que é de grande ajuda a quem procura um familiar desaparecido uma vez que fornece a identificação ou então informações sobre o corpo, já constam quase dois mil corpos não reclamados em um período de três anos. É difícil acreditar que quase duas mil famílias não estão preocupadas com o paradeiro de seus entes. A explicação, além do problema de cruzamento de dados já citado, pode estar na própria existência da lista, desconhecida pela maioria da população da capital paulista.
Desde que passou a publicar essa relação, o Serviço Funerário já recebeu 50 contatos, sendo que 15 deles retornaram dizendo que a lista ajudou na localização de desaparecidos. Cemitério da ditadura
O cemitério de Perus, vale lembrar, é um local é conhecido historicamente por ter enterrado, de forma clandestina, mortos políticos da época da Ditadura Militar (1964-1985), indigentes, alvos do Esquadrão da Morte e vítimas, a maioria crianças, de um surto de meningite que o governo abafou nos anos de 1970.
Foi nesta década, aliás – mais precisamente em 1971, que o então prefeito Paulo Maluf inaugurou o Dom Bosco. Durante anos, aquele foi o esconderijo perfeito para as vítimas do regime militar brasileiro.
Somente em 1990, após uma investigação do jornalista Caco Barcellos, a vala clandestina foi descoberta e passou a ser objeto de inquérito durante o mandato da prefeita Luiza Erundina. Em um espaço que não constava na planta oficial do cemitério, 1.049 ossadas foram encontradas sem identificação alguma.
Mural em memória dos desaparecidos políticos enterrados em Perus (Foto: Band)
Desde então, apenas três restos mortais foram identificados no período em que o trabalho antropológico era da alçada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Após denúncia de má conservação, as ossadas foram levadas para o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp.
Segundo o Grupo de Trabalho de Perus (GTP) - que atua na identificação das ossadas, de outubro de 2014 a março deste ano, 626 das 1.049 caixas foram abertas, limpas e analisadas; nesse período, também foram realizadas coletas em 74 pessoas de 31 famílias diferentes para comparação do perfil genético. Ainda de acordo com o GTP, mais três ossadas já estão prestes a serem identificadas.
Enquanto a identidade dos mortos da vala clandestina permanece uma incógnita, novas perguntas também sem respostas vão se acumulando no subterrâneo deste mesmo cemitério.
Lara Lopes chora ao lembrar dos preconceitos que enfrentou em seu país natal (Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas)
Quando Lara Lopes, de 33 anos, deixou Moçambique, na África, ela já estava em seu limite. Lésbica, Lara precisou buscar asilo em outro país por causa de sua orientação sexual. "A maioria dos países africanos olha a comunidade LGBT como pessoas doentes ou possuídas por algum espírito. Várias vezes ouvi isso e, durante parte da minha vida, achei que fosse verdade", desabafa.
Parte das 250 solicitações de refúgio que o Brasil processou baseadas em perseguição de gênero ou de orientação sexual, a moçambicana participou, nesta terça-feira (27) em São Paulo, do lançamento de uma cartilha de proteção a refugiados LGBT, criada pela agência da ONU para refugiados (ACNUR) e pelo alto comissariado para direitos humanos (ACNUDH). O material está disponível em quatro línguas: português, espanhol, inglês e francês.
"No meu país, eu era obrigada a construir uma família 'normal', que é a mulher casando com o homem, tendo filhos e agradando aos familiares", relata. "Chegou um tempo em que eu não aguentava mais. Eu não conseguia emprego por ser homossexual, eu estava estudando, mas na faculdade meus colegas e até professores me olhavam como se eu não fosse humana. Minha mãe me perguntava por que eu não queria mais sair de casa, como eu posso ir para rua se lá todos pensam que sou doente?"
Lara lembra ainda que teve uma grande amiga assassinada em Moçambique somente pelo fato de ela ser LGBT. "Você vê amigos e familiares serem violentados e mortos, mas não há nada que você possa fazer", lamenta já aos prantos.
"Não é que no Brasil não tenha homofobia, mas aqui pelo menos existem leis para nos proteger", acrescenta Lara, cuja natal Moçambique é vizinha de países como Malawi, Tanzânia, Zimbábue e Zâmbia, que aplicam penas severas, como prisão perpétua e até punição corporal aos homossexuais.
Discriminação durante o processo de asilo
Nem todos os solicitantes de refúgio sabem, no entanto, de seus direitos – e às vezes nem se aceitam como integrantes da comunidade LGBT. Foi para difundir essas informações – e também devido a um aumento dos pedidos de asilos relacionados à perseguição por orientação sexual – que a cartilha foi elaborada.
"Essa cartilha tem função dupla: garantir que os LGBTs conheçam seus direitos e saibam onde buscar apoio e também informar a sociedade brasileira sobre quem são essas pessoas e quais dificuldades enfrentam", pontua Diego Nardi, assistente de meios de vida do Acnur.
Diego ressalta que não é somente no país de origem que refugiados LGBTs sofrem; isso também ocorre ao longo do processo de solicitação de asilo. "Muitas vezes eles se deparam com funcionários que não estão preparados para atendê-los, e aplicam procedimentos abusivos – como pedir para que comprovem a orientação sexual – ou até nos centros de acolhidas, onde alguns conterrâneos podem também ser hostis."
"Vivemos com medo"
Foi o que aconteceu com Mahmoud Hassino, refugiado sírio homossexual que chegou a Alemanha em 2014 e precisou deixar às pressas um abrigo de imigrantes por ter sofrido preconceito de outros sírios. "Vivemos com medo de sermos identificados como gays, porque, dessa forma, viramos alvos de ataque", declarou em entrevista à Associated Press.
O país árabe é um dos 73 que criminalizam as relações homossexuais, inclusive com pena de morte. Após a conquista de territórios sírios pelo grupo terrorista Estado Islâmico, começou a circular na internet vídeos em que os extremistas impõem suas punições, que incluem jogar homossexuais do alto de prédios e convocar a população para apedrejá-los até a morte.
Reprodução
Para Diego Nardi, do Acnur, a cartilha também deve ajudar a facilitar a entrada desses LGBTs em países que oferecem asilo. "Uma pessoa que é obrigada a viver escondendo sua sexualidade, sua identidade de gênero, já significa que sofre perseguição e merece refúgio", explica. "Para ela, poder ir a um lugar onde é possível amar livremente e viver sem se esconder é uma conquista, uma verdade vitória."