Foto: arquivo pessoal
Dandara sempre foi um nome forte muito antes do vídeo de uma sessão de tortura e violência circular pelas redes sociais. Era o nome de uma guerreira negra do Brasil colônia, esposa de Zumbi dos Palmares, que, diz a lenda, se matou para não voltar à dura realidade da escravidão.
Essa perseverança de viver como sonhou, e não como outros queriam que vivesse, também era uma das características de Dandara dos Santos. A cearense de 42 anos teve a coragem de viver como era mesmo sabendo dos riscos que corria por morar no país que mais mata transexuais no mundo.
Em 15 de fevereiro deste ano, Dandara entrou para as estatísticas que formam um panorama assustador: a cada 25 horas, uma pessoa morre vítima da homofobia no Brasil, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), que faz esse levantamento. O caso da cearense poderia ser mais um entre muitos que são ignorados, só não foi porque um vídeo em que a travesti, já coberta de sangue, aparece sendo espancada e xingada por um grupo de homens se tornou viral na internet.
Esse mesmo vídeo apareceu nas redes sociais de Francisca Ferreira, mãe de Dandara, que sem querer assistiu as últimas imagens da filha em vida. “Ele ficou lá, quieto, sem falar nada, esperando a morte”, lembra a aposentada, que chora. O relato é um dos pontos altos do documentário de curta-metragem Dandara, que estreia neste domingo (19), às 15h30, no Festival Mix Brasil. Haverá também sessão na terça-feira (21) às 19h30. Ambas acontecem no CCSP (Centro Cultural São Paulo), na capital paulista.
O filme deriva de uma grande reportagem que os jornalistas e diretores do curta, Fred Bottrel e Flávia Ayer, do jornal Estado de Minas, realizaram sobre o caso. Eles viajaram para Fortaleza, onde, um mês antes, Dandara havia sido morta a tiros após a sessão de tortura. O material que colheram, como depoimentos de familiares e amigos, “merecia um tratamento mais longevo”, na opinião de Fred. “A gente entendeu que a história de Dandara precisava ser contada de forma mais profunda, e também circular por outros públicos”, explica o diretor ao Portal da Band.
A dupla, que passou uma semana na capital cearense, pensou ainda em um jeito diferente de começar o filme. “Inserimos um conceito para que o espectador se coloque no lugar de Dandara. Posicionamos a câmera como plano subjetivo dentro do carrinho de mão [objeto para carregar a travesti após as agressões] e circulamos pelo mesmo local onde a violência toda aconteceu”, conta Fred. “É um exercício de empatia mesmo”, definiu.
Assista ao trailer:
A repercussão das imagens chocantes que antecederam a morte da cearense fez com que o governador do Estado, Camilo Santana, assinasse um decreto permitindo que transexuais possam usar o nome social na utilização de serviços públicos e também que trans mulheres, vítimas de violência, sejam atendidas nas Delegacias da Mulher do Ceará.
Além disso, a deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) apresentou um projeto batizado de Lei Dandara dos Santos, que propõe alteração do Código Penal para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o mesmo no rol de crimes hediondos. Apesar de tanta violência, a homofobia ainda não foi tipificada como crime no Brasil.
Morreu por confiar em todo mundo
Para o irmão de Dandara, Ricardo Vasconcelos, essas mudanças que surgem aos poucos trazem um pouco de conforto à família. “Talvez ele tenha morrido para ajudar mais gente, principalmente aqueles que são excluídos, que sofrem preconceito”, diz em entrevista ao Portal da Band.
Ele ressalta que a irmã faz muita falta, principalmente para a mãe - que era muito ligada a ela, e que será lembrada como uma pessoa de boa índole, carinhosa, generosa e que, segundo ele, foi atraída para a própria execução por “confiar muito em todo mundo, a ponto de subir na garupa de uma moto sem imaginar que estava indo de encontro à morte”.
Ricardo, que trabalha como motorista da Uber, conta ainda que sempre cita o que aconteceu com a irmã - a quem ele se refere como irmão, quando algum passageiro fala sobre violência. “Eu falo com orgulho que meu irmão era travesti, um ser humano igual a todos nós, e que foi brutalmente assassinado por pessoas que não têm amor no coração.”
Dez pessoas acusadas de envolvimento com a execução de Dandara aguardam decisão judicial, que talvez saia em um júri popular que pode acontecer no ano que vem. Caso as qualificações do crime, como motivo fútil, impossibilidade de defesa e crueldade, sejam aceitas, os acusados podem receber pena de até 30 anos. O motociclista que levou a travesti até o local da tortura permanece foragido.
“A Dandara não está sozinha. É um caso que escancara a violência transfóbica que todos os dias mata transexuais no país. Se esse assunto não tiver a atenção que merece, isso nunca vai mudar”, pontua, por fim, o diretor do documentário.
(Karen Lemos - Portal da Band)
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