domingo, 5 de novembro de 2017

Dois anos após maior desastre ambiental do país, clima é de incerteza em Mariana

As ruínas de Bento Rodrigues, distrito devastado na tragédia (Foto: Flávio Ribeiro/Vertices)

Cinco de novembro de 2015. Há exatos dois anos, a barragem de Fundão, localizada em um subdistrito da cidade histórica de Mariana (MG), se rompeu despejando um mar de lama que destruiu municípios, contaminou a importante bacia hidrográfica do Rio Doce, comprometeu toda a fauna e flora da região e matou 19 pessoas, sendo que uma delas permanece desaparecida até hoje.

Neste especial, o Portal da Band pôde concluir que a palavra que melhor resume esta tragédia ambiental - a maior do país - é “incerteza”. Não se sabe quando os indiciados pela tragédia vão pagar por esse crime; não dá para mensurar até que ponto a vida do Rio Doce está comprometida; é difícil precisar o quanto a economia de Mariana, tão dependente da mineração, vai sofrer com a queda de arrecadação. São os moradores das cidades atingidas, entretanto, que nesses dois anos mais sofreram com tantas dúvidas que surgem em busca de alguma resposta.

Tragédia continuada

Desde que a vida mudou drasticamente naquele 5 de novembro de 2015, Maria* sente que jamais deixou de viver a tragédia. “Ainda sentimos - e muito - as consequências do rompimento da barragem. Foram tantas perdas irreparáveis. Com a lama, morreram pessoas, histórias e sonhos”, conta a moradora da região, que conhecia três das vítimas fatais, inclusive aquela cujo corpo jamais foi encontrado.

Maria vive em uma comunidade próxima de Mariana, que não foi invadida pelos rejeitos, mas foi impactada financeiramente quando a Samarco, responsável pela barragem de Fundão, suspendeu contratos de funcionários (layoff) e colocou em prática um plano de demissão voluntária de 40% de seu quadro de empregados.

“A Samarco empregava, ainda, muitos funcionários terceirizados, que até agora não conseguiram outro trabalho”, detalha. “A fila do Sine (Sistema Nacional de Emprego) vive cheia, e não há vagas”. Maria diz ainda que, nesses dois anos, algumas empresas chegaram à cidade com oferta de empregos, mas, com tanta insegurança financeira, acabam ficando pouco tempo. “Quem pode está indo embora [de Mariana] para trabalhar em outro lugar.”

Prefeito Duarte Júnior em coletiva de imprensa dois dias após o desastre (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

“É muito difícil”, resume Duarte Júnior (PPS), prefeito de Mariana, quando questionado pela reportagem sobre a situação do município. A arrecadação da cidade também sofreu com a suspensão das atividades da mineradora. A queda na receita chega a 34,62%. Com o desemprego na casa dos 23% (ante os 4% a 5% precedentes da tragédia), aumenta a procura por serviços sociais na cidade, que luta para mantê-los enquanto procura outra fonte de renda.
“Vivemos uma situação de dois extremos: ainda estamos recuperando uma cidade das consequências de uma tragédia envolvendo a mineração e, por outro lado, temos a necessidade do retorno dessa atividade para garantir emprego ao povo de Mariana.”

Após o desastre, um fundo foi criado para incentivar a contratação local na cidade. Gerido pela Fundação Renova, pelo Estado e com apoio da prefeitura, o fundo oferece aporte de R$ 60 milhões para empresas âncoras que tenham interesse em investir no município. Por enquanto, não teve muitos resultados. “Aguardamos ansiosos, para diminuir essa dependência [da mineração]”, acrescenta o prefeito.

Rio Doce

As dificuldades financeiras das cidades diretamente atingidas ou indiretamente impactadas pelo desastre se agravam também pela contaminação do Rio Doce. Um mar de lama com cerca de 32 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração chegou ao rio e percorreu 650 km até o oceano. Isso no dia da tragédia. Especialistas afirmam que resíduos remanescentes de Fundão ou que ficaram pelo caminho da lama continuam descendo até o Rio Doce toda vez que chove, por exemplo.

Pescador mostra peixes mortos na tragédia (Leonardo Merçon/Últimos Refúgios)

A grande quantidade de rejeitos matou peixes e outros animais do rio, aves que se alimentavam na bacia hidrográfica e plantas das regiões próximas. Prejudicou todo o setor pesqueiro, muito forte nos municípios por onde o Rio Doce passa, e também as plantações de pequenos agricultores.

Isso sem contar o prejuízo ocasionado no período em que o abastecimento das casas foi suspenso devido à contaminação. Até hoje, muitos moradores - quando podem - optam por comprar água mineral por não confiarem na qualidade da água que sai das torneiras. A água de abastecimento é segura, porque passa por tratamento. Mas a oscilação da qualidade do Rio Doce pode prejudicar o processo.

“Em épocas de chuva, a qualidade da água muda, e o tratamento também precisa ser modificado; é um problema diário”, explica Hernani Santana, coordenador de engenharia ambiental da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), que vem desenvolvendo projetos de pesquisa relacionados à avaliação de danos no rio.

O especialista também recorre à palavra incerteza para falar da situação da bacia hidrográfica. “Até hoje não temos como mensurar todos os impactos que o Rio Doce sofreu e vai sofrer”, afirma ao Portal da Band. Além da chuva, qualquer ação que cause um movimento mais brusco no rio interfere nesta avaliação. “Os metais depositados no fundo voltam à superfície, mudando de um dia para o outro nossa análise.”

Equipe faz o monitoramento da água do Rio Doce (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)

Entre os metais pesados, trazidos ao Rio Doce pela lama da Samarco, Hernani cita dados preocupantes. “Já encontramos mercúrio, alumínio e até arsênio, que em grandes quantidades é extremamente tóxico”, afirmou. O especialista não vê uma solução para o rio em curto prazo, principalmente neste momento do país em que investimentos para a ciência estão cada vez mais escassos. “Falta recurso, sim, muitas vezes ficamos ‘a ver navios’”, completa.
Impunidade

Enquanto os munícipes tentam solucionar e superar as consequências de uma tragédia que parece não ter fim, eles aguardam ainda respostas da Justiça. Dois anos depois, tampouco dá para saber quando isso vai acontecer.

Pelo desastre da barragem de Fundão, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 22 pessoas e as empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR. Dos 22 nomes, 21 são acusados pelo crime de homicídio qualificado com dolo eventual - quando se assume o risco de matar, entre elas o ex-diretor-presidente da Samarco Ricardo Vescovi. Em seu inquérito, a Polícia Federal já havia indiciado oito pessoas e as empresas Samarco, Vale e VogBR. Até agora, ninguém foi preso.

O MPF ainda ordenou que empresas paguem uma indenização no valor de R$ 155 bilhões. A celebração deste acordo também caminha a passos lentos. A Justiça postergou o prazo final para o dia 16 deste mês. O processo havia sido sustado por alegações de escutas telefônicas ilegais.

Foto aérea de distrito atingido pela lama de rejeitos (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Além disso, um levantamento feito pelo jornal espanhol El País mostrou que apenas 1% das multas por crime ambiental, aplicadas às empresas responsabilizadas pela tragédia, foi pago. Essas penalidades totalizam R$ 552 milhões. É importante destacar que uma das empresas envolvidas nos processos, a Vale, teve um lucro de R$ 7,14 bilhões no terceiro trimestre deste ano – o que representou uma alta de 288% com relação ao mesmo período do ano passado.

Nesses dois anos, as famílias contempladas com auxílios financeiros emergenciais tiveram ainda que recorrer ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para receber os valores acertados pela Samarco e suas acionistas. Primeiro foram 105 famílias; a Justiça ordenou que 85 delas recebam imediatamente o subsídio. Na segunda audiência de reconciliação, foram analisados pedidos de mais 30 famílias; dessas, as empresas reconheceram os direitos ao auxílio emergencial de 23.

Fundação Renova

Em março de 2016, a Samarco e suas acionistas, bem como os governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, além de autarquias, fundações e institutos, assinaram um termo para garantir proteção ambiental, recuperação dos municípios e indenização das famílias à luz do desastre.

Para organizar esses projetos, foi criada a Fundação Renova, que administra 42 programas diversos com um aporte total de R$ 11 bilhões previstos até 2030. É da alçada da fundação, por exemplo, reconstruir Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo (de Mariana) e Gesteira (de Barra Longa), distritos devastados com a lama da barragem.

“Esperamos que no início do primeiro trimestre ou quadrimestre do ano que vem já seja possível iniciar a construção das casas e dos equipamentos públicos, como campos de futebol, escolas, postos de saúde, igrejas, praças; a comunidade terá a seu dispor uma estrutura completa”, prevê Marcus Fuchs, gerente dos programas socioeconômicos em entrevista ao Portal da Band. Para cumprir o cronograma, fixado no primeiro semestre de 2019, o ritmo de trabalho será intensificado em 2018.

Reparação em propriedades rurais de Mariana (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)

Outros projetos, porém, ainda não estão tão bem definidos assim. É o caso do manejo de rejeitos. A Samarco ficou responsável por retirar uma parte da lama que ficou retida na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga, até dezembro de 2016. O cronograma atrasou. Sob a administração da Renova, mais de 900 mil metros cúbicos de rejeito foram retirados, mas ainda há muito trabalho a ser feito e com um agravante: ninguém sabe o que fazer com tanta lama.
“Estamos na fase de estudos sobre quais atividades esses rejeitos podem servir”, explica Fuchs. “Ainda não é conclusivo porque precisamos ter certeza de que o produto não vai representar nenhum risco à saúde. Tendo essa certificação, teríamos ainda que pensar na logística para transportar esse material.” Um dos possíveis usos da lama que está sendo cogitado é utilização na construção civil.

Hernani Santana, da Univale, está desenvolvendo um projeto para usar a decantação da lama que resta do tratamento da água para transformar em telhas ou cerâmicas. “Isso pode ser feito, mas mesmo assim a quantidade de rejeito ainda é muito grande. Daria para construir uma cidade inteira com tudo aquilo e ainda teria lama sobrando. Precisamos de mais pesquisas e projetos para encontrar uma solução”, completa.

Algumas iniciativas da fundação, entretanto, começam a apresentar resultados positivos. Segundo relatório divulgado pelo Ibama mês passado, dos 101 afluentes (mais oito ramificações que puderam ser acessadas) do Rio Doce, 89 não mais recebem lama de rejeitos. Vinte ainda apresentam processos que carregam lama para a bacia. A Renova reconheceu que nesses 20 afluentes as ações em curso não foram suficientes para conter esse carreamento, mas elas continuam sendo monitoradas.

Virar a página


Ainda sentindo as consequências dois anos depois do maior desastre ambiental do país, e no aguardo de tempos melhores que tardam a chegar, os marinenses e outros munícipes atingidos não veem a hora de virar essa página. “Temos esperança de lembrar esse 5 de novembro somente como uma tragédia que aconteceu, e não porque não conseguimos superá-la”, desabafa Maria. “Nosso lugar é muito bom para viver; as pessoas são boas e humildes. Mesmo na dificuldade, a gente se ajuda quando precisa”, ressalta.

Duarte Júnior, que assumiu a prefeitura de Mariana meses antes do desastre, partilha da mesma opinião e reforça seu desejo por Justiça. “[As empresas responsáveis pelo rompimento da barragem] levaram bilhões de lucros de terra dos marinenses; eles não podem virar as costas para a população; têm que pagar o que devem”, pontua. “A lição foi dada: o homem precisa tomar muito cuidado com o meio ambiente e extrair suas riqueza com responsabilidade. Não queremos ser lembrados como a cidade da lama, mas sim como a bela Mariana, a primeira cidade de Minas Gerais.”

* Nome alterado a pedido da fonte

(Karen Lemos - Portal da Band)

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