quarta-feira, 12 de julho de 2017

Cemitério de Perus tem milhares de ossadas empilhadas em seu subterrâneo

Pilhas de ossos se acumulam em ossário subterrâneo (Foto: Eliana Vendramini)

Quinze mil ossadas, em média, estão empilhadas em sacos dentro de um grande ossário, que fica fechado ao público, no Cemitério Municipal Dom Bosco, em Perus, Zona Norte da cidade de São Paulo.

Quem passa por ali – seja para visitar familiares ou conhecidos lá enterrados, ou mesmo para fazer uma caminhada pela área verde urbana de 254 mil m² - nem imagina o que há no subterrâneo de um galpão localizado próximo dos muros do cemitério, que também guardam ossadas, mas apenas para aqueles que podem pagar uma taxa R$ 83,77 a cada cinco anos para ali mantê-los.

No grande ossário subterrâneo, estão armazenados restos mortais de pessoas cujos familiares não puderam pagar a taxa, uma realidade para muitos, já que o cemitério realiza sepultamento gratuito para famílias de baixa renda. Algumas dessas ossadas, entretanto, são um retrato do tratamento que o Estado de São Paulo dá a seus mortos.

Visão mais geral do ossário subterrâneo (Foto: Eliana Vendramini)

Destino dos mortos

Quando uma pessoa morre em São Paulo, há dois órgãos que trabalham em sua identificação: o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), quando a morte é natural, e o Instituto Médico Legal (IML), quando a morte é considerada suspeita e precisa ser investigada.

Nenhum desses órgãos, porém, notifica os familiares mesmo quando o cadáver possui documentos ou características possíveis para reconhecê-lo, como tatuagens, cicatrizes, uma prótese ou algo do tipo. O corpo é enterrado como não reclamado sem que seus parentes, muitas vezes, tenham conhecimento.

Em alguns casos, os familiares estão em busca daquela pessoa, registraram boletim de ocorrência de seu desaparecimento e aguardam uma resposta das autoridades. Os dados da Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, não são cruzados com os dados do SVO ou do IML pelo fato de não existir um banco de dados simples que unifique essas informações.

O trabalho de localizar um ente querido, levando em consideração que ele possa ter falecido, fica nas mãos da própria pessoa que por ele procura. Além da vulnerabilidade comum do momento difícil, o trabalho se mostra humanamente impossível.

Existem 72 unidades do Instituto Médico Legal no Estado de São Paulo. O prazo mínimo que o IML dá para que um corpo seja reclamado é de 72 horas; levando isso em conta, é preciso que se visite - a cada hora, durante três dias - todas as unidades do IML em um território de 248.209 km². Também é preciso consultar o Serviço de Verificação de Óbito, que muitos desconhecem a existência.

"Redesaparecimento"

A bola de neve que se tornou a questão ganhou até um neologismo. "Redesaparecimento" é quando o Estado encontra um desaparecido, mas "some" novamente com ele ao enterrá-lo sem que as pessoas que o procuram tenham ciência disso.

O termo aparece na ação que o Ministério Público está movendo desde o mês de maio deste ano para solicitar um banco de dados que reúna informações do próprio MP, do IML, do SVO, da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Secretaria da Saúde e do Instituto de Identificação.

A promotora Eliana Vendramini, que coordena, dentro do MP, o Plid - Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, acredita que a implantação desse banco de dados – algo simples e fácil de fazer, segundo ela – vai aliviar o drama de familiares que passam, em alguns casos, até anos procurando por parentes em São Paulo.

"Tratam esse tema como se não fosse algo importante", critica Vendramini, que recebeu a reportagem do Portal da Band no Plid. "O Estado, no entanto, precisa começar a investir nisso, porque esse problema pode acontecer com qualquer um de nós. Eu posso morrer sozinha em casa de algum problema no coração, ir para o SVO, ser enterrada em Perus e minha família não ser avisada disso", exemplificou.

Um caso parecido com essa hipotética situação aconteceu de fato na Zona Sul de São Paulo em 2015. João Silva*, na casa dos 40 anos, teve um infarto em via pública. Seu corpo foi periciado no IML, que obteve sua identidade por meio das digitais, mas não avisou a família, que já havia registrado boletim de ocorrência de seu desaparecimento. Os dados não foram cruzados e João foi enterrado em Perus. Somente um mês depois a família tomou conhecimento, pelo Plid, do que havia acontecido com ele.

Covas para inumação de indigentes e não reclamados (Foto: Band)

Banco de dados

Vendramini está baseando a ação em uma lei estadual de 2014, do deputado Hamilton Pereira (PT), que exige a criação de um banco de dados para ajudar na localização de pessoas desaparecidas. "A implementação é bem simples, o que seria mais complexo é a capacitação dos funcionários que vão preencher os dados. É preciso ter muitas informações, como cor da pele, se tem tatuagens, as roupas, fotografias, enfim. Depois disso, o próprio banco faria esse cruzamento de dados sozinho."

A partir do trabalho do Plid, o IML começou a desenvolver, em 2015, um banco de dados que reúne informações sobre os corpos autopsiados. Em nota, a Superintendência da Polícia Técnico-Científica - que responde pelo IML, afirmou que todas as suas unidades estão integradas no programa e que há profissionais treinados para usá-lo.

A promotora de Justiça, porém, alerta que os dados que chegam até o DHPP não são examinados pela delegacia porque não há funcionário para fazer essa análise. "Eu soube de um atraso de mais de um mês para abrir as informações que o IML repassa diariamente."

A Superintendência da Polícia Técnico-Científica respondeu que, desde a implementação do sistema, houve dez mil acessos por parte de policiais civis e técnico-científicos e que o programa será ampliado para as outras unidades da Polícia Civil do Estado.

Corrida contra o tempo


Enquanto os órgãos que tratam das mortes no Estado não se comunicam de maneira efetiva, muitas famílias continuam sem respostas para suas dúvidas. Desde 2000, os familiares de José Souza* buscam informações sobre seu paradeiro. Há 15 anos, os documentos de José foram encontrados junto ao corpo de uma vítima de afogamento, já em avançado estágio de decomposição. Os laudos de DNA foram inconclusivos e um exame antropológico da ossada jamais foi realizado.

Durante todo esse período, a família paga um ossário particular no cemitério de Perus para que os restos mortais não sejam levados ao subterrâneo do ossário geral, dificultando ainda mais uma possível identificação futura.

Ossários particulares do Cemitério Dom Bosco (Foto: Band)

"Com o passar dos anos, a ossada pode se degradar, ser reduzida a pequenos fragmentos ou mesmo mofar; esses fatores podem, sim, interferir na análise", explica o antropólogo forense Paulo Tieppo.

O Serviço Funerário de São Paulo, que é de responsabilidade da prefeitura da cidade, confirmou as informações sobre o ossário geral do cemitério Dom Bosco, que sepulta, em média, 10 corpos de pessoas não reclamadas por semana.

Em nota, o órgão disse ainda que “todos os sepultamentos de pessoas reclamadas ou não reclamadas constam nos livros de registro do cemitério”. As fotografias do local mostram, porém, que as etiquetas que trazem algumas informações sobre aqueles restos mortais também se degradam com o tempo.

No local, há, inclusive, etiquetas que se desprenderam do saco com ossadas e estão no chão, já sem possibilidades de saber a qual ossada aquelas informações se referem.

Saco com ossos já sem a identificação e etiqueta com informações de restos mortais no chão (Foto: Eliana Vendramini)

Quase dois mil não reclamados

O problema, que começa na administração estadual e atinge a municipal, fica mais palpável quando vemos, em números, a sua dimensão. Desde 2014, o Serviço Funerário publica em seu site, e também no Diário Oficial do Município, a lista das pessoas sepultadas cujos corpos foram encaminhados pelo IML e SVO para colaborar na localização de pessoas desaparecidas.

No serviço, que é de grande ajuda a quem procura um familiar desaparecido uma vez que fornece a identificação ou então informações sobre o corpo, já constam quase dois mil corpos não reclamados em um período de três anos. É difícil acreditar que quase duas mil famílias não estão preocupadas com o paradeiro de seus entes. A explicação, além do problema de cruzamento de dados já citado, pode estar na própria existência da lista, desconhecida pela maioria da população da capital paulista.

Desde que passou a publicar essa relação, o Serviço Funerário já recebeu 50 contatos, sendo que 15 deles retornaram dizendo que a lista ajudou na localização de desaparecidos.

Cemitério da ditadura


O cemitério de Perus, vale lembrar, é um local é conhecido historicamente por ter enterrado, de forma clandestina, mortos políticos da época da Ditadura Militar (1964-1985), indigentes, alvos do Esquadrão da Morte e vítimas, a maioria crianças, de um surto de meningite que o governo abafou nos anos de 1970.

Foi nesta década, aliás – mais precisamente em 1971, que o então prefeito Paulo Maluf inaugurou o Dom Bosco. Durante anos, aquele foi o esconderijo perfeito para as vítimas do regime militar brasileiro.

Somente em 1990, após uma investigação do jornalista Caco Barcellos, a vala clandestina foi descoberta e passou a ser objeto de inquérito durante o mandato da prefeita Luiza Erundina. Em um espaço que não constava na planta oficial do cemitério, 1.049 ossadas foram encontradas sem identificação alguma.

Mural em memória dos desaparecidos políticos enterrados em Perus (Foto: Band)

Desde então, apenas três restos mortais foram identificados no período em que o trabalho antropológico era da alçada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Após denúncia de má conservação, as ossadas foram levadas para o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp.

Segundo o Grupo de Trabalho de Perus (GTP) - que atua na identificação das ossadas, de outubro de 2014 a março deste ano, 626 das 1.049 caixas foram abertas, limpas e analisadas; nesse período, também foram realizadas coletas em 74 pessoas de 31 famílias diferentes para comparação do perfil genético. Ainda de acordo com o GTP, mais três ossadas já estão prestes a serem identificadas.

Enquanto a identidade dos mortos da vala clandestina permanece uma incógnita, novas perguntas também sem respostas vão se acumulando no subterrâneo deste mesmo cemitério.

Organizações dedicadas à procura de desaparecidos

Além do serviço prestado pelo Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, do Ministério Público, outras organizações também ajudam na busca por pessoas desaparecidas. Citamos aqui algumas delas:

Mães da Sé
Instituto Ana Paula Moreno de Reintegração Familiar
Mães em Luta
Desaparecidos do Brasil


* Os nomes foram alterados para não expor as famílias


(Karen Lemos - Portal da Band)

Nenhum comentário: