quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Cerca de 5% dos presos não retornam das saídas temporárias

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Jonathan Pereira do Prado deveria ter se apresentado ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de São José do Rio Preto, em São Paulo, em março. Cumprindo pena por furto, ele havia sido beneficiado por uma medida conhecida como saída temporária, um dos programas de reinserção social do sistema penitenciário brasileiro.

Como não retornou ao CPP, Jonathan se tornou foragido da Justiça. No dia 1º deste mês, ele combinou uma falsa carona com a jovem Kelly Cadamuro, que foi assaltada, violentada e morta com socos e estrangulamento.

A brutalidade do crime alimenta a polêmica que já existe em relação ao benefício das saídas temporárias.

Os números mostram, porém, que a maioria dos beneficiados cumpre as regras da medida que, segundo um especialista da área, pode, sim, ser positiva, mas é preciso aplicá-la de forma correta para que o resultado seja ainda mais eficaz no processo de ressocialização.

Dados


Segundo dados divulgados pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), 96,11% dos beneficiados retornaram da saída de Páscoa em 2017; já o índice de retorno da saída de Dia das Mães deste ano foi de 96,74%.

Em um comparativo com os últimos dez anos, esta porcentagem continua alta. Em média, 94,51% dos detentos que saíram para a Páscoa retornaram para a penitenciária entre 2006 e 2016.


Na saída temporária de Dia das Mães, a média do índice de retorno neste mesmo período é de 95,14%.


Em ambos os casos, a porcentagem de beneficiados que não retornaram ao sistema prisional não chega a 5,2%.

Pequenos testes


A saída temporária é concedida para presos em regime semiaberto, que tenham cumprido um sexto da pena (ou um quarto da pena em caso de reincidência) e apresentado bom comportamento dentro da penitenciária. São cinco saídas ao ano (Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças e Natal/Ano-Novo) que podem durar até sete dias.

Para Rogério Cury, especialista em Direito Penal, o programa pode funcionar para medir o progresso do detento em sua reinserção. “O benefício funciona como pequenos testes de convívio em sociedade. O preso sairá da cadeia um dia, então essa é uma forma gradual de ele ir ganhando liberdade”, define em conversa com o Portal da Band.

Com a saída temporária, explica Cury, o detento pode começar a montar uma estrutura para sua nova vida. “Ele pode, por exemplo, ir fazendo contatos para conseguir um emprego quando sair da cadeia ou buscar alguém que possa ajudá-lo ou dar apoio enquanto ele tenta se reerguer”, exemplificou.

O especialista diz ainda que o Estado “apenas encarcera”, e não dá “condições mínimas” para que o preso seja ressocializado. O benefício, portanto, poderia proporcionar alguma oportunidade de futuro. “É preciso ter cuidado com o processo de reinserção social; temos que tratar esse assunto de maneira adequada e rígida, porque sem condições dignas, ele vai voltar para a delinquência”, ressalta.

Os detentos que não retornam para a cadeia após a saída temporária automaticamente perdem o direito ao benefício e são reconduzidos ao regime fechado.

Já os números sobre reincidência criminal - quando um novo crime é cometido - são vagos. Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) reuniu várias pesquisas; uma delas mostra que a média nacional gira em torno de 70%, mas, devido a escassez de trabalhos de estudo sobre o tema, os dados ainda são imprecisos.


O advogado observa, no entanto, que independentemente da porcentagem, reincidentes criminais provam que o processo de reinserção de presos precisa ser aprimorado.

Descrença


Quando um preso que ganha saída temporária volta a cometer delitos, ou então autores de crimes que causaram comoção nacional - como Suzane Richthofen ou Anna Carolina Jatobá - recebem esse benefício, ocorre uma descrença em sua eficácia.

A morte da jovem Kelly Cadamuro, que citamos no início da matéria, fez com que um abaixo-assinado virtual fosse criado contra a saída temporária, por exemplo. Até o fechamento desta reportagem, mais de 40 mil pessoas haviam assinado a petição.

Monitoramento

Para combater casos como o de Jonathan Pereira do Prado, o especialista Rogério Cury sugere mais fiscalização para o benefício, e não a extinção dele, visto que a porcentagem de retorno é muito maior e pode trazer bons resultados para a reinserção social.

“Toda saída temporária tem que ter monitoração eletrônica do preso através da tornozeleira. O problema é que muitos Estados brasileiros, inclusive em São Paulo - que possui a maior população carcerária do país - sequer concedem esse aparelho”. Entre os motivos deste problema estão falta de verba ou demora na licitação para solicitar o equipamento.

Foto: Akira Onuma/Ascom Susipe

Cury explica que, com a tornozeleira eletrônica, a polícia poderia facilmente encontrar o preso que não retornou da saída temporária e impedi-lo, dessa forma, de voltar a cometer crimes.

Gastos

O advogado sustenta ainda que investir em monitoramento é até uma solução mais barata. “O preso mal ressocializado, que volta a cometer crimes, gera gastos com operação policial para prendê-lo, delegado para investigá-lo, além do processo judicial do caso que envolve promotor, defensor público e juiz. O custo de um delito é sempre maior, e o Estado ainda paga indenização das vítimas de presos reincidentes.”

Isso sem contar o valor que o Estado voltará a desembolsar com o detento que retorna ao sistema carcerário. Em novembro do ano passado, durante um encontro de secretários de Segurança Pública, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, afirmou que um preso custa R$ 2,4 mil mensais (média nacional) - 13 vezes mais do que um estudante no Brasil.

Apesar da observação feita pela presidente do STF, a Câmara dos Deputados aprovou no dia 9 um projeto de lei que endurece as regras da saída temporária, ampliando ainda mais o tempo e o dinheiro gasto com o encarceramento.

Pelo texto aprovado, o juiz de execução penal só concederá a autorização se o detento tiver, além de bom comportamento, cumprido no mínimo um sexto da pena se for primário na condenação e metade da pena se for reincidente. A autorização judicial também não pode ser superior a quatro dias, podendo ser renovada por mais uma vez no ano.

“Dessa forma, vamos continuar rasgando dinheiro, porque seguimos não investindo em maneiras eficazes de colocar um preso em liberdade”, resume Cury.

(Karen Lemos - Portal da Band)

sábado, 18 de novembro de 2017

Dandara, a travesti que o preconceito matou, vira tema de documentário

Foto: arquivo pessoal

Dandara sempre foi um nome forte muito antes do vídeo de uma sessão de tortura e violência circular pelas redes sociais. Era o nome de uma guerreira negra do Brasil colônia, esposa de Zumbi dos Palmares, que, diz a lenda, se matou para não voltar à dura realidade da escravidão.

Essa perseverança de viver como sonhou, e não como outros queriam que vivesse, também era uma das características de Dandara dos Santos. A cearense de 42 anos teve a coragem de viver como era mesmo sabendo dos riscos que corria por morar no país que mais mata transexuais no mundo.

Em 15 de fevereiro deste ano, Dandara entrou para as estatísticas que formam um panorama assustador: a cada 25 horas, uma pessoa morre vítima da homofobia no Brasil, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), que faz esse levantamento. O caso da cearense poderia ser mais um entre muitos que são ignorados, só não foi porque um vídeo em que a travesti, já coberta de sangue, aparece sendo espancada e xingada por um grupo de homens se tornou viral na internet.

Esse mesmo vídeo apareceu nas redes sociais de Francisca Ferreira, mãe de Dandara, que sem querer assistiu as últimas imagens da filha em vida. “Ele ficou lá, quieto, sem falar nada, esperando a morte”, lembra a aposentada, que chora. O relato é um dos pontos altos do documentário de curta-metragem Dandara, que estreia neste domingo (19), às 15h30, no Festival Mix Brasil. Haverá também sessão na terça-feira (21) às 19h30. Ambas acontecem no CCSP (Centro Cultural São Paulo), na capital paulista.

O filme deriva de uma grande reportagem que os jornalistas e diretores do curta, Fred Bottrel e Flávia Ayer, do jornal Estado de Minas, realizaram sobre o caso. Eles viajaram para Fortaleza, onde, um mês antes, Dandara havia sido morta a tiros após a sessão de tortura. O material que colheram, como depoimentos de familiares e amigos, “merecia um tratamento mais longevo”, na opinião de Fred. “A gente entendeu que a história de Dandara precisava ser contada de forma mais profunda, e também circular por outros públicos”, explica o diretor ao Portal da Band.

A dupla, que passou uma semana na capital cearense, pensou ainda em um jeito diferente de começar o filme. “Inserimos um conceito para que o espectador se coloque no lugar de Dandara. Posicionamos a câmera como plano subjetivo dentro do carrinho de mão [objeto para carregar a travesti após as agressões] e circulamos pelo mesmo local onde a violência toda aconteceu”, conta Fred. “É um exercício de empatia mesmo”, definiu.

Assista ao trailer:


A repercussão das imagens chocantes que antecederam a morte da cearense fez com que o governador do Estado, Camilo Santana, assinasse um decreto permitindo que transexuais possam usar o nome social na utilização de serviços públicos e também que trans mulheres, vítimas de violência, sejam atendidas nas Delegacias da Mulher do Ceará.

Além disso, a deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) apresentou um projeto batizado de Lei Dandara dos Santos, que propõe alteração do Código Penal para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o mesmo no rol de crimes hediondos. Apesar de tanta violência, a homofobia ainda não foi tipificada como crime no Brasil.

Morreu por confiar em todo mundo

Para o irmão de Dandara, Ricardo Vasconcelos, essas mudanças que surgem aos poucos trazem um pouco de conforto à família. “Talvez ele tenha morrido para ajudar mais gente, principalmente aqueles que são excluídos, que sofrem preconceito”, diz em entrevista ao Portal da Band.

Ele ressalta que a irmã faz muita falta, principalmente para a mãe - que era muito ligada a ela, e que será lembrada como uma pessoa de boa índole, carinhosa, generosa e que, segundo ele, foi atraída para a própria execução por “confiar muito em todo mundo, a ponto de subir na garupa de uma moto sem imaginar que estava indo de encontro à morte”.

Ricardo, que trabalha como motorista da Uber, conta ainda que sempre cita o que aconteceu com a irmã - a quem ele se refere como irmão, quando algum passageiro fala sobre violência. “Eu falo com orgulho que meu irmão era travesti, um ser humano igual a todos nós, e que foi brutalmente assassinado por pessoas que não têm amor no coração.”

Dez pessoas acusadas de envolvimento com a execução de Dandara aguardam decisão judicial, que talvez saia em um júri popular que pode acontecer no ano que vem. Caso as qualificações do crime, como motivo fútil, impossibilidade de defesa e crueldade, sejam aceitas, os acusados podem receber pena de até 30 anos. O motociclista que levou a travesti até o local da tortura permanece foragido.

“A Dandara não está sozinha. É um caso que escancara a violência transfóbica que todos os dias mata transexuais no país. Se esse assunto não tiver a atenção que merece, isso nunca vai mudar”, pontua, por fim, o diretor do documentário.

(Karen Lemos - Portal da Band)

domingo, 5 de novembro de 2017

Dois anos após maior desastre ambiental do país, clima é de incerteza em Mariana

As ruínas de Bento Rodrigues, distrito devastado na tragédia (Foto: Flávio Ribeiro/Vertices)

Cinco de novembro de 2015. Há exatos dois anos, a barragem de Fundão, localizada em um subdistrito da cidade histórica de Mariana (MG), se rompeu despejando um mar de lama que destruiu municípios, contaminou a importante bacia hidrográfica do Rio Doce, comprometeu toda a fauna e flora da região e matou 19 pessoas, sendo que uma delas permanece desaparecida até hoje.

Neste especial, o Portal da Band pôde concluir que a palavra que melhor resume esta tragédia ambiental - a maior do país - é “incerteza”. Não se sabe quando os indiciados pela tragédia vão pagar por esse crime; não dá para mensurar até que ponto a vida do Rio Doce está comprometida; é difícil precisar o quanto a economia de Mariana, tão dependente da mineração, vai sofrer com a queda de arrecadação. São os moradores das cidades atingidas, entretanto, que nesses dois anos mais sofreram com tantas dúvidas que surgem em busca de alguma resposta.

Tragédia continuada

Desde que a vida mudou drasticamente naquele 5 de novembro de 2015, Maria* sente que jamais deixou de viver a tragédia. “Ainda sentimos - e muito - as consequências do rompimento da barragem. Foram tantas perdas irreparáveis. Com a lama, morreram pessoas, histórias e sonhos”, conta a moradora da região, que conhecia três das vítimas fatais, inclusive aquela cujo corpo jamais foi encontrado.

Maria vive em uma comunidade próxima de Mariana, que não foi invadida pelos rejeitos, mas foi impactada financeiramente quando a Samarco, responsável pela barragem de Fundão, suspendeu contratos de funcionários (layoff) e colocou em prática um plano de demissão voluntária de 40% de seu quadro de empregados.

“A Samarco empregava, ainda, muitos funcionários terceirizados, que até agora não conseguiram outro trabalho”, detalha. “A fila do Sine (Sistema Nacional de Emprego) vive cheia, e não há vagas”. Maria diz ainda que, nesses dois anos, algumas empresas chegaram à cidade com oferta de empregos, mas, com tanta insegurança financeira, acabam ficando pouco tempo. “Quem pode está indo embora [de Mariana] para trabalhar em outro lugar.”

Prefeito Duarte Júnior em coletiva de imprensa dois dias após o desastre (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

“É muito difícil”, resume Duarte Júnior (PPS), prefeito de Mariana, quando questionado pela reportagem sobre a situação do município. A arrecadação da cidade também sofreu com a suspensão das atividades da mineradora. A queda na receita chega a 34,62%. Com o desemprego na casa dos 23% (ante os 4% a 5% precedentes da tragédia), aumenta a procura por serviços sociais na cidade, que luta para mantê-los enquanto procura outra fonte de renda.
“Vivemos uma situação de dois extremos: ainda estamos recuperando uma cidade das consequências de uma tragédia envolvendo a mineração e, por outro lado, temos a necessidade do retorno dessa atividade para garantir emprego ao povo de Mariana.”

Após o desastre, um fundo foi criado para incentivar a contratação local na cidade. Gerido pela Fundação Renova, pelo Estado e com apoio da prefeitura, o fundo oferece aporte de R$ 60 milhões para empresas âncoras que tenham interesse em investir no município. Por enquanto, não teve muitos resultados. “Aguardamos ansiosos, para diminuir essa dependência [da mineração]”, acrescenta o prefeito.

Rio Doce

As dificuldades financeiras das cidades diretamente atingidas ou indiretamente impactadas pelo desastre se agravam também pela contaminação do Rio Doce. Um mar de lama com cerca de 32 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração chegou ao rio e percorreu 650 km até o oceano. Isso no dia da tragédia. Especialistas afirmam que resíduos remanescentes de Fundão ou que ficaram pelo caminho da lama continuam descendo até o Rio Doce toda vez que chove, por exemplo.

Pescador mostra peixes mortos na tragédia (Leonardo Merçon/Últimos Refúgios)

A grande quantidade de rejeitos matou peixes e outros animais do rio, aves que se alimentavam na bacia hidrográfica e plantas das regiões próximas. Prejudicou todo o setor pesqueiro, muito forte nos municípios por onde o Rio Doce passa, e também as plantações de pequenos agricultores.

Isso sem contar o prejuízo ocasionado no período em que o abastecimento das casas foi suspenso devido à contaminação. Até hoje, muitos moradores - quando podem - optam por comprar água mineral por não confiarem na qualidade da água que sai das torneiras. A água de abastecimento é segura, porque passa por tratamento. Mas a oscilação da qualidade do Rio Doce pode prejudicar o processo.

“Em épocas de chuva, a qualidade da água muda, e o tratamento também precisa ser modificado; é um problema diário”, explica Hernani Santana, coordenador de engenharia ambiental da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), que vem desenvolvendo projetos de pesquisa relacionados à avaliação de danos no rio.

O especialista também recorre à palavra incerteza para falar da situação da bacia hidrográfica. “Até hoje não temos como mensurar todos os impactos que o Rio Doce sofreu e vai sofrer”, afirma ao Portal da Band. Além da chuva, qualquer ação que cause um movimento mais brusco no rio interfere nesta avaliação. “Os metais depositados no fundo voltam à superfície, mudando de um dia para o outro nossa análise.”

Equipe faz o monitoramento da água do Rio Doce (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)

Entre os metais pesados, trazidos ao Rio Doce pela lama da Samarco, Hernani cita dados preocupantes. “Já encontramos mercúrio, alumínio e até arsênio, que em grandes quantidades é extremamente tóxico”, afirmou. O especialista não vê uma solução para o rio em curto prazo, principalmente neste momento do país em que investimentos para a ciência estão cada vez mais escassos. “Falta recurso, sim, muitas vezes ficamos ‘a ver navios’”, completa.
Impunidade

Enquanto os munícipes tentam solucionar e superar as consequências de uma tragédia que parece não ter fim, eles aguardam ainda respostas da Justiça. Dois anos depois, tampouco dá para saber quando isso vai acontecer.

Pelo desastre da barragem de Fundão, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 22 pessoas e as empresas Samarco, Vale, BHP Billiton e VogBR. Dos 22 nomes, 21 são acusados pelo crime de homicídio qualificado com dolo eventual - quando se assume o risco de matar, entre elas o ex-diretor-presidente da Samarco Ricardo Vescovi. Em seu inquérito, a Polícia Federal já havia indiciado oito pessoas e as empresas Samarco, Vale e VogBR. Até agora, ninguém foi preso.

O MPF ainda ordenou que empresas paguem uma indenização no valor de R$ 155 bilhões. A celebração deste acordo também caminha a passos lentos. A Justiça postergou o prazo final para o dia 16 deste mês. O processo havia sido sustado por alegações de escutas telefônicas ilegais.

Foto aérea de distrito atingido pela lama de rejeitos (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Além disso, um levantamento feito pelo jornal espanhol El País mostrou que apenas 1% das multas por crime ambiental, aplicadas às empresas responsabilizadas pela tragédia, foi pago. Essas penalidades totalizam R$ 552 milhões. É importante destacar que uma das empresas envolvidas nos processos, a Vale, teve um lucro de R$ 7,14 bilhões no terceiro trimestre deste ano – o que representou uma alta de 288% com relação ao mesmo período do ano passado.

Nesses dois anos, as famílias contempladas com auxílios financeiros emergenciais tiveram ainda que recorrer ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para receber os valores acertados pela Samarco e suas acionistas. Primeiro foram 105 famílias; a Justiça ordenou que 85 delas recebam imediatamente o subsídio. Na segunda audiência de reconciliação, foram analisados pedidos de mais 30 famílias; dessas, as empresas reconheceram os direitos ao auxílio emergencial de 23.

Fundação Renova

Em março de 2016, a Samarco e suas acionistas, bem como os governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, além de autarquias, fundações e institutos, assinaram um termo para garantir proteção ambiental, recuperação dos municípios e indenização das famílias à luz do desastre.

Para organizar esses projetos, foi criada a Fundação Renova, que administra 42 programas diversos com um aporte total de R$ 11 bilhões previstos até 2030. É da alçada da fundação, por exemplo, reconstruir Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo (de Mariana) e Gesteira (de Barra Longa), distritos devastados com a lama da barragem.

“Esperamos que no início do primeiro trimestre ou quadrimestre do ano que vem já seja possível iniciar a construção das casas e dos equipamentos públicos, como campos de futebol, escolas, postos de saúde, igrejas, praças; a comunidade terá a seu dispor uma estrutura completa”, prevê Marcus Fuchs, gerente dos programas socioeconômicos em entrevista ao Portal da Band. Para cumprir o cronograma, fixado no primeiro semestre de 2019, o ritmo de trabalho será intensificado em 2018.

Reparação em propriedades rurais de Mariana (Foto: Gustavo Baxter/Nitro)

Outros projetos, porém, ainda não estão tão bem definidos assim. É o caso do manejo de rejeitos. A Samarco ficou responsável por retirar uma parte da lama que ficou retida na Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga, até dezembro de 2016. O cronograma atrasou. Sob a administração da Renova, mais de 900 mil metros cúbicos de rejeito foram retirados, mas ainda há muito trabalho a ser feito e com um agravante: ninguém sabe o que fazer com tanta lama.
“Estamos na fase de estudos sobre quais atividades esses rejeitos podem servir”, explica Fuchs. “Ainda não é conclusivo porque precisamos ter certeza de que o produto não vai representar nenhum risco à saúde. Tendo essa certificação, teríamos ainda que pensar na logística para transportar esse material.” Um dos possíveis usos da lama que está sendo cogitado é utilização na construção civil.

Hernani Santana, da Univale, está desenvolvendo um projeto para usar a decantação da lama que resta do tratamento da água para transformar em telhas ou cerâmicas. “Isso pode ser feito, mas mesmo assim a quantidade de rejeito ainda é muito grande. Daria para construir uma cidade inteira com tudo aquilo e ainda teria lama sobrando. Precisamos de mais pesquisas e projetos para encontrar uma solução”, completa.

Algumas iniciativas da fundação, entretanto, começam a apresentar resultados positivos. Segundo relatório divulgado pelo Ibama mês passado, dos 101 afluentes (mais oito ramificações que puderam ser acessadas) do Rio Doce, 89 não mais recebem lama de rejeitos. Vinte ainda apresentam processos que carregam lama para a bacia. A Renova reconheceu que nesses 20 afluentes as ações em curso não foram suficientes para conter esse carreamento, mas elas continuam sendo monitoradas.

Virar a página


Ainda sentindo as consequências dois anos depois do maior desastre ambiental do país, e no aguardo de tempos melhores que tardam a chegar, os marinenses e outros munícipes atingidos não veem a hora de virar essa página. “Temos esperança de lembrar esse 5 de novembro somente como uma tragédia que aconteceu, e não porque não conseguimos superá-la”, desabafa Maria. “Nosso lugar é muito bom para viver; as pessoas são boas e humildes. Mesmo na dificuldade, a gente se ajuda quando precisa”, ressalta.

Duarte Júnior, que assumiu a prefeitura de Mariana meses antes do desastre, partilha da mesma opinião e reforça seu desejo por Justiça. “[As empresas responsáveis pelo rompimento da barragem] levaram bilhões de lucros de terra dos marinenses; eles não podem virar as costas para a população; têm que pagar o que devem”, pontua. “A lição foi dada: o homem precisa tomar muito cuidado com o meio ambiente e extrair suas riqueza com responsabilidade. Não queremos ser lembrados como a cidade da lama, mas sim como a bela Mariana, a primeira cidade de Minas Gerais.”

* Nome alterado a pedido da fonte

(Karen Lemos - Portal da Band)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Documentário resgata a 'era de ouro' das videolocadoras de São Paulo

Documentário não foca na nostalgia, mas presta homenagem às lojas que marcaram gerações (Divulgação)

Serviços de streaming como Netflix e Vod (vídeo sob demanda), a televisão por assinatura e até a pirataria mudaram nossa forma de consumir filmes, séries, desenhos e documentários. Antes disso, porém, imperava um tipo de negócio que, da década de 1970 até meados dos anos 2000, era a única maneira de levar grandes obras e as novidades do audiovisual para o conforto do lar.

Foi com as videolocadoras que o diretor Alan Oliveira alimentou sua paixão pelo cinema e a relação com outros cinéfilos como ele. “Existia uma magia no ato de levar um filme para casa. Eu me lembro do cheiro das fitas, de você precisar rebobiná-las após assistir. Era uma experiência física, muito sensorial e também sociocultural. Tinha aquela conversa com o atendente, que dava sugestões de filmes, e com outros clientes com quem você poderia trocar dicas do que alugar”, lembra.

Quando surgiram os sinais de que esse império começava a ruir, Alan ficou interessado em registrar o movimento nas últimas videolocadoras que ainda resistiam, além de resgatar a "era de ouro" do mercado de aluguel de filmes.

“Eu sempre quis saber o que aconteceu com essas pessoas [donos de videolocadoras] e não tinha ideia, porque ninguém falava disso”, conta ao Portal da Band o diretor, que a partir desta curiosidade começou a produzir um documentário sobre o tema: CineMagia, em cartaz nos cinemas a partir da quinta-feira da próxima semana, dia 9 de novembro.

Confira o trailer:


O documentário, Alan Oliveira gosta de ressaltar, não é um filme nostálgico sobre esse modelo de negócio, mas, sim, uma homenagem aos 40 anos em que as locadoras transformaram o mercado do audiovisual em São Paulo. “A gente ‘não mata’ as videolocadoras, pelo contrário, nós as celebramos”, explica.

A primeira videolocadora

Na capital paulista, em 1976, surge a primeira loja do tipo. Desta data em diante, o setor ficou tão forte que assumiu função parecida com as de distribuidoras de filmes. “Não existiam as distribuidoras ainda, então muitos filmes eram copiados. Algumas vezes a qualidade da imagem era bem ruim, outras cópias nem legenda tinham; mesmo assim os clientes alugavam porque queriam assistir aos sucessos da época”, detalha Alan.

As locadoras que tinham mais dinheiro iam além e viajavam ao exterior para comprar os filmes, que posteriormente eram ‘lançados’ em suas filiais. Outras chegaram até mesmo a patrocinar a Fórmula 1, competição mais importante do automobilismo.

O documentário CineMagia também resgata a imponência das lojas. “Na década de 1980, os filmes ficavam dispostos em pilares com luzes de neon coloridas, o que era uma loucura para aquela ocasião. A Omni Vídeo, por exemplo, tinha um prédio na Avenida Faria Lima, que você subia de elevador de tão grande que era”, conta o diretor. Vale citar ainda a rede norte-americana Blockbuster, que tinha lojas espalhadas por toda a cidade, e a tradicional 2001 Video, que fechou suas últimas unidades físicas no final de 2015.

Mais de 200 horas de material

Resgatar uma história de quatro décadas não foi tarefa fácil. As primeiras pesquisas para produzir o documentário foram praticamente infrutíferas, já que não há muito sobre o assunto na internet. O trabalho começou a dar resultados com o garimpo de sebos. “Encontramos revistas antigas que nos davam pistas sobre os antigos donos de videolocadoras em São Paulo”, diz Alan.

Além dos antigos donos desse comércio, o filme traz depoimentos de clientes, distribuidores, jornalistas e críticos de cinema renomados, como Rubens Ewald Filho e Christian Petermann, que morreu ano passado. “São pedaços de memórias que compõem um raio-x do que foi esse mercado”, resume o cineasta.

Com os relatos, os registros das atividades das últimas videolocadoras e imagens de arquivo para falar do começo desse império já são mais de 200 horas de material bruto. Todo esse conteúdo também vai virar série de televisão e um livro, ambos sem data de lançamento.

Novas gerações

Para Alan Oliveira, celebrar o fenômeno que foram as videolocadoras não tira a importância das ferramentas de hoje. “A relação que a geração de hoje tem com a Netflix é diferente, mas isso não quer dizer que é ruim. Se antes era custoso achar um filme, tinha que sair de casa, procurar nas prateleiras ou esperar alguém devolver, agora é só apertar um botão e, se não gostar, tem outros títulos à disposição.”

Quarenta anos após o boom das videolocadoras, duas lojas continuam de portas abertas em São Paulo: uma no prédio do Copan, no centro da capital, e outra no bairro Sapopemba, na Zona Leste. Tal resistência é uma prova de que a paixão pelo audiovisual se transforma, mas jamais se extingue.

(Karen Lemos - Portal da Band)