Foto: Divulgação/HBO
A história de um perigo invisível e de uma nação tão fechada cuja negligência levou a consequências fatais sempre atraiu a atenção pública. Não por acaso uma das séries mais faladas do momento é “Chernobyl”, da HBO, que retrata o acidente nuclear de grandes proporções ocorrido em 1986 na Ucrânia, então república da União Soviética.
As cenas que a série criou parar mostrar a explosão de um dos núcleos da usina - que espalhou altos níveis de radiação pelo ar de Pripyat (hoje uma cidade fantasma) e regiões próximas - e os efeitos do envenenamento radioativo em seres humanos impressionaram a audiência.
Para entender se as imagens são verossímeis ao que realmente aconteceu, o Portal da Band conversou com uma especialista em física médica e descobriu que a série se aproxima da veracidade, mas, como é natural de obras ficcionais, se permite a exageros para efeitos dramáticos.
“Para físicos que estudam essa área, a forma como a série mostra tecnicamente como foi a explosão em Chernobyl é muito boa. Tanto a explosão quanto as consequências; o incêndio, a logística para apagar o fogo, o problema do magma radioativo, enfim, são detalhes que se aproximam do real”, relata Kellen Adriana Curci Daros, chefe da coordenadoria de física médica da Escola Paulista de Medicina e vice-coordenadora do Núcleo de Rádio Proteção da Unifesp.
Já os efeitos biológicos foram dramatizados. Em “Chernobyl”, há personagens - como trabalhadores da usina e os bombeiros que tentam apagar o incêndio sem proteção alguma - que ficam expostos à altíssimas doses de radiação e acabam contaminados, sofrendo o que é chamado de Síndrome Aguda da Radiação, algo como um envenenamento que acaba levando a morte.
A doença, que ocorre quando o corpo absorve uma dose alta de radiação - e isso é medido pela unidade conhecida como Gray (Gy) - destrói o DNA de células importantes e vitais para nosso organismo.
A professora explica que há várias fases dessa síndrome. “Na primeira fase, hematopoiética, as primeiras células a serem afetadas são as do sangue. Isso ocorre quando o corpo humano absorve uma dose de 2 a 6 Gy.”
Em outra fase, chamada gastrointestinal, são as células dos tecidos que formam nossas mucosas que são afetadas. “Na série você vê pessoas vomitando. Isso acontece porque há lesão na mucosa intestinal. A pessoa evacua sangue, vomita sangue, e o fígado não consegue renovar essas células, então fatalmente essa pessoa vai morrer”, explica a especialista.
A última fase é fatal. Conhecida como neurovascular, é nessa etapa que o envenenamento por radiação passa a destruir as células do sistema nervoso central do corpo humano. “Quando a dose de radiação absorvida chega a 10 Gy, os sintomas são convulsão, coma e, em 48 horas, morte.”
As cenas nas quais são mostradas as últimas horas dos personagens de “Chernobyl” que estão contaminados com altas doses de radiação até podem ser críveis com relação à aparência, mas não condiz com a realidade em alguns aspectos, como nos diálogos que foram estabelecidos entre o bombeiro e sua esposa, ou então entre a professora de física nuclear com um dos funcionários da usina.
Veja algumas cenas da série que exemplificam isso. Fique atento para possíveis spoilers, caso você não tenha assistido a esses episódios ainda.
“Uma pessoa nessa fase da síndrome não conseguiria falar. Muito provavelmente ela já estaria em choque, inconsciente, desorientada ou até em coma”, acrescenta. “[Sobre a aparência] vai ter desprendimento da pele, hemorragias, mas talvez não em níveis tão chocantes assim. Há casos de hemorragias internas, por exemplo, mas se houve uma contaminação direta com a pele, obviamente vão aparecer lesões.”
A especialista explica ainda que não é possível afirmar com 100% de certeza que as primeiras vítimas fatais de Chernobyl ficaram daquela forma. “Não há registro de pacientes nesse estado”, conta. “Primeiro porque naquela época eram usados filmes fotográficos, portanto não era tecnicamente possível tirar foto de algo que emana tanta radiação. Segundo que estamos falando da União Soviética, um país muito fechado a ponto de não permitir registros daquilo.”
Além da síndrome, a exposição à doses não seguras de radiação também podem acarretar problemas a médio e longo prazo. É o chamado efeito estocástico. “A Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalha com um limite de 20 mSv (unidade usada para medir o impacto da radiação sobre os seres humanos) ao ano. Ultrapassou isso, haverá efeito a longo prazo, que é o câncer”, pontua a especialista.
Na série “Chernobyl”, o cientista Valery Legasov, interpretado pelo ator Jared Harris, diz que vai morrer dentro de cinco anos, devido ao tempo em que fica vunerável à doses não seguras de radiação enquanto está no local do acidente nuclear, tentando entender o que aconteceu e minimizar os impactos da catástrofe. “Ele provavelmente fez uma conta baseada nesses números que estabelecem um limite seguro. Se o limite é 20 mSv/ano, e em um mês ele recebe, por exemplo, 100 mSv, a probabilidade de ele desenvolver um câncer é cada vez maior.”
Um estudo do Comitê Científico sobre os Efeitos da Radiação Atômica (UNSCEAR) revelou que cerca de 20 mil casos de câncer de tireoide foram registrados entre 1991 e 2015, em pessoas que viveram na época do acidente de Chernobyl, nas áreas afetadas da antiga União Soviética. Desses casos, o comitê estima que um em cada quatro é atribuível à exposição à radiação nuclear.
Há registros também de câncer de tireoide em crianças, o que costuma a ser raro, mas o risco aumenta em casos de indivíduos expostos à radiação; isso porque a tireoide é uma glândula com bastante afinidade ao iodo. “Por isso na série eles falam em pílulas de iodo. O que você está ingerindo é um iodo 'bom', que preenche toda a glândula, impedindo que o iodo radioativo penetre ali”, acrescenta Kellen.
Entendendo as doses de radiação
A radiação em doses monitoradas, no entanto, não é nociva; em alguns casos, pode até ser uma aliada. A radiografia (raio X), por exemplo, utiliza essa fonte de energia para o diagnóstico de doenças que precisam ser tratadas. “Em doses muito baixas de radiação, o corpo consegue se regenerar. O benefício de um exame médico, portanto, é bem maior em relação aos riscos”, explica a professora Kellen Adriana Curci Daros.
A legislação brasileira estabelece, através da Portaria nº 453 da Anvisa, o limite de 0,4 miligray (mGy) no exame radiológico de tórax, o que não representa risco para a saúde. A especialista explica ainda que no ano dessa portaria, 1998, os exames ainda eram analógicos. “Hoje em dia tudo é digital. Dá para baixar ainda mais o nível de radiação”, pontua.
Além disso, estamos expostos a o que os cientistas chamam de radiação natural, que vem de muitas fontes, incluindo mais de 60 materiais encontrados no solo, na água e no ar. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) trabalha com uma média de 2,6 mGy de dose de radiação absorvida ao ano.
Para entender melhor a diferença entre essas doses de radiação, o Portal da Band elaborou um gráfico expositivo:
Um acidente como Chernobyl pode ocorrer no Brasil?
No Brasil, temos duas usinas nucleares ativas, conhecidas como Angra 1 e Angra 2, e uma em construção (Angra 3). Todas estão localizadas em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. O sucesso da série “Chernobyl” levantou uma discussão nas redes sociais sobre possíveis riscos de um acidente nuclear no País, hipótese que é afastada pela especialista consultada pela reportagem.
“Chernobyl era uma usina muito antiga, cujo projeto tinha defeitos que a União Soviética ignorou; estamos falando de uma série de fragilidades que Angra não possui”, explica Kellen. “As chances de algo acontecer no Brasil são pequenas. A Comissão Nacional de Energia Nuclear é bastante criteriosa e segue protocolos internacionais rígidos de segurança. Claro que possibilidades sempre existem. Pegue como exemplo [o acidente nuclear] de Fukushima [no Japão]. Os japoneses são muito criteriosos, mas quem ia esperar que um tsunami de grande magnitude pudesse atingir a usina? Isso é uma exceção. A probabilidade real de ocorrência de um acidente assim é mínima.”
Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto - complexo formado pelo conjunto das usinas nucleares Angra 1, Angra 2 e Angra 3 [em construção] (Foto: Wikimedia Commons)
A tragédia em Chernobyl é mais sobre erro humano e negligência governamental do que um evento inesperado, como o que ocorreu em Fukushima. O próprio Mikhail Gorbatchov, presidente da União Soviética na época, admitiu que o acidente nuclear contribuiu para o colapso do país em 1991. Os números oficiais até hoje falam em 31 mortes causadas pela tragédia. As estimativas, porém, contando doenças pós-exposição e contaminação à radiação, vão mais longe: chegam a 90 mil.
Em entrevista ao Metro Internacional, o roteirista e produtor-executivo da série, Craig Mazin, falou da importância de relembrar Chernobyl nos dias de hoje. “Vivemos em uma época em que as pessoas estão voltando a abraçar a ideia corrosiva de que o que se quer ser é mais importante do que a verdade. O sistema soviético estava encharcado com esse culto da narrativa, mas, um dia, a verdade vem à tona.”
Com uma trama tão instigante, não é à toa que a série se tornou a mais bem avaliada pelos usuários do site IMDB, com nota 9,6. “Chernobyl” chega ao final nesta sexta-feira, 7, com a exibição de seu quinto e último episódio.
(Karen Lemos - Portal da Band)
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