quinta-feira, 20 de junho de 2019

“Há muita desinformação”, diz diretora de filme sobre memórias da ditadura

A atriz Jeanne Boudier em cena do filme “Deslembro” (Foto: Divulgação)

Foram as lembranças de uma infância vivida em um momento delicado da história do Brasil que levou a cineasta Flavia Castro a dirigir “Deslembro”, filme nacional produzido por Walter Salles que chega aos cinemas do País nesta quinta-feira, 20.

O filme acompanha a adolescente Joana, filha de uma militante exilada e de um desaparecido político que deixa Paris, na França, para voltar ao Brasil após a Lei da Anistia, que permitiu o retorno de brasileiros que viviam, através de pedidos de asilo político, em outros países durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).

A trajetória lembra um pouco a da diretora, que também cresceu na França depois que o pai foi exilado pelo regime militar. “Durante a montagem do documentário ‘Diário de uma Busca’, onde falo sobre meu pai e minha infância no exílio, senti uma necessidade de ir mais a fundo em um trabalho sobre a memória através da ficção, porque queria contar essa narrativa de uma forma mais lúdica, com uma subjetividade maior”, explica a cineasta em entrevista ao Portal da Band.

Flavia espera que seu filme possa contribuir para discussões sobre esse período da história. Com uma frequência cada vez maior, o assunto vem sido debatido através de um viés negacionista, termo usado para designar fatos que são negados, por mais que as evidências históricas os comprovem.

“Na Alemanha, negar o Holocausto [extermínio de judeus pelos nazistas] é crime. Na Argentina, nem os militares negam os crimes da ditadura. Uma coisa é você ter pontos de vista diferentes, você ser de direita ou você ser de esquerda. Outra coisa é você negar a História”, pontua.

A diretora diz que o filme traz elementos que condizem com a realidade do Brasil naquele período. “Em certo momento [do longa-metragem], a viagem escolar da protagonista não é autorizada porque o pai, um desaparecido político, não tinha atestado de óbito. Isso é real. No Brasil daquele tempo, questões simples da vida cotidiana se transformavam em problemas complicados de se resolver”, acrescenta a cineasta. “Meu sonho é que os jovens assistam ao filme, porque há muita desinformação sobre a ditadura por aí.”

Para além do pano de fundo histórico, “Deslembro” aposta em uma narrativa contada pela perspectiva de uma adolescente. Todos os sentimentos comuns ao ser humano nessa fase da vida acompanham a trajetória de Joana. Dessa forma, há uma tentativa de construir um sentimento de identificação com o espectador. “Tem outras coisas da vida que aparecem no filme. É um filme sobre a ditadura, mas não é só sobre isso”, afirma Flavia.




Construção de personagens

Interpretando Ana, militante política e mãe de Joana, Sara Antunes também levou algumas memórias pessoais para a trama. Assim como a cineasta Flavia Castro, a atriz viu o pai ser exilado na França durante o regime militar. “Quando fui convidada para fazer ‘Deslembro’, eu estava justamente pesquisando material sobre o exílio do meu pai. Parece que esse convite era uma coisa que tinha que acontecer, sabe? Essa história [do filme] é um pouco minha também“, define em conversa com a reportagem.

Sara já havia trabalhado em uma produção com essa temática: “Alma Clandestina”, sobre a guerrilheira Maria Auxiliadora. No longa de Flavia Castro, porém, ela foi desenvolvendo um processo de desconstrução do mito da guerrilheira, tentando deixá-la mais humana. “A Flavia me pediu algo mais familiar, mais materno para viver a Ana. É uma mãe guerrilheira, que pega em armas, acredita na revolução, mas é a mãe que corta o tomate e a cebola do jantar da família. A Ana podia ser a mãe de qualquer um de nós.”

Uma das surpresas do filme, a revelação Jeanne Boudier, intérprete da protagonista Joana, nasceu na França e tem pouco contato com esse passado do Brasil; ainda assim, ela relata ter encontrado pontos de convergência com a personagem. “Eu pensava que eu não tinha nada a ver com esse ambiente”, diz. “Mas, quando comecei a filmar, estava com 16 anos e, assim como toda garota nessa idade, vivia o mesmo turbilhão de emoções que a minha personagem. No fundo somos todos iguais; temos sentimentos, conflitos na família, primeiros namorados. O filme fala disso tudo.”

Os atores Jeanne Boudier, Hugo Abranches e Sara Antunes (Foto: Divulgação)

Completam o elenco Eliane Giardini, que vive a avó de Joana, Jesuíta Barbosa, o pai desaparecido, Hugo Abranches, Arthur Raynaud, Antonio Carrara e Marcio Vito.

Clima de medo

O rebuliço político que o País vive desde 2013, que se intensificou nas eleições presidenciais de 2014 e de 2018, forma um cenário singular para o lançamento de um filme que toca em um assunto que gera discussões acaloradas. O próprio longa-metragem pontua isso em certo momento, com personagens trocando expressões (“cala a boca, fascista” e “vai para Cuba”) que passaram a ser mais usadas.

A torcida da equipe de “Deslembro” é para que o filme contribua para um diálogo saudável, mas tanto a diretora quanto as atrizes citam certo receio com relação à animosidade que tem tomado conta das discussões sobre política no Brasil.

Em conversa com a reportagem, a atriz Sara Antunes repercutiu uma entrevista que Wagner Moura, seu amigo pessoal, concedeu ao australiano Daily Telegraph durante o Festival de Cinema de Sydney. No evento, o ator exibiu “Marighella”, filme sobre o guerrilheiro Carlos Marighella. Para o veículo, Wagner expressou uma preocupação de retornar para o Brasil devido às hostilidades que têm recebido desde quando iniciou as filmagens dessa produção.

“O Wagner se colocou muito de frente nessas questões políticas. Eu entendo completamente o receio dele, porque as pessoas estão tão cegas, tão desinformadas e munidas de ódio. É para se ter medo mesmo”, desabafa Sara.

A diretora Flavia Castro recorda-se ainda de alguns comentários que leu em redes sociais após a exibição de “Deslembro” no Festival de Cinema do Rio. O filme foi exibido antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Na ocasião, a disputa entre os candidatos ao cargo, Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL), mexia com a opinião dos brasileiros de forma exponencial.

“Cheguei a ver coisas horríveis, como comentários de pessoas dizendo que as crianças do filme tinham que morrer, ou então que os pais militantes jamais deveriam ter tido filhos”, lembra. “No caso do [filme] ‘Marighella’ é algo ainda mais escandaloso. Para mim, a partir do momento em que um artista não pode se expressar livremente sem ser hostilizado, deixamos de viver em uma democracia”, observa.

A diretora Flavia Castro em frente ao cartaz do filme (Foto: Divulgação)

Esses ataques, no entanto, não são regras, segundo a cineasta. “Deslembro” tem feito uma carreira interessante. Foi exibido, por exemplo, no Festival de Cinema de Veneza, um dos mais prestigiados do mundo, e recebeu prêmios, como o da crítica no Festival de Biarritz e de melhor filme no Festival de Cinema Brasileiro em Paris. “As percepções são variadas. Na Mostra de Cinema de São Paulo, por exemplo, a recepção foi emocionante, quase catártica. Muitos jovens vieram me abraçar, preocupados com o que será do nosso futuro”, completa Flavia, cujo filme é justamente um convite à reflexão de um passado que continua à espreita.

(Karen Lemos - Portal da Band)

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