quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Deputados não têm poder para questionar o STF na polêmica sobre o aborto

Mulheres fazem protesto no Rio de Janeiro pela legalização do aborto (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Durante a votação do pacote anticorrupção na Câmara dos Deputados, que teve início na noite de terça-feira e se estendeu até a madrugada desta quarta, parlamentares que principalmente compõe a bancada evangélica da Casa se manifestaram contra a decisão do STF, que entendeu não ser crime o aborto nos três primeiros meses de gestação.

Diante da pressão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou a criação de uma comissão especial que irá analisar o entendimento da Suprema Corte.

Ao Portal da Band, a especialista em Direito Médico Maria Luiza Gorga, do Braga Martins Advogados, esclareceu que nem a comissão e nem os parlamentares têm poder para que a decisão do Legislativo se sobreponha a do Judiciário.

“O que deve ser feito [na comissão] é a apresentação de uma emenda constitucional para conferir esse poder a eles”, explica. Tal emenda, contudo, seria inconstitucional, esclarece ainda a advogada.

Tentativas anteriores


Tentativas de interferência do Poder Legislativo no Poder Judiciário aconteceram ao menos em dois episódios recentes com a PEC 3 e a PEC 33. A primeira garantia aos parlamentares o direito de sustar atos normativos de outros poderes; já a segunda limitava os poderes do Supremo Tribunal Federal ao submeter suas decisões ao Congresso. Ambas as propostas foram arquivadas.

Resposta ao eleitorado

Assim como nas ocasiões anteriores aqui citadas, emendas do tipo surgem sempre que o Supremo diz algo que o Legislativo não gosta. O novo episódio desta semana revela, além do mais, o retrato da Câmara em sua composição atual: mais conservadora e com uma bancada evangélica forte.

Não é surpresa alguma, à vista disso, que um tema como o aborto tenha provocado tanto os ânimos dos deputados.

Nesse sentido, a comissão criada para analisar a decisão do STF surge também como uma resposta ao eleitorado mais conservador, que contribuiu para a construção do Congresso Nacional como conhecemos hoje.

“Essa tentativa de interferência entre poderes é péssima, portanto, porque mostra que os deputados não se importam de fato com a Constituição e legislam em causa própria”, destaca Maria Luiza Gorga.

Direitos previstos na Constituição

A especialista ressalta ainda que a atuação do Supremo - ao decidir pela descriminalização do aborto nos três primeiros meses de gravidez - está em linha com o que a Constituição não só permite que ele o faça, mas que também dele exige. “A decisão do STF apenas efetivou direitos já previstos na Constituição, mas cuja discussão estava largada pelo Legislativo.”

“Em síntese, entendeu-se que a conduta pode ser relativizada pelo contexto social da gestante, mesmo que o Código Penal Brasileiro proíba expressamente o aborto. Isto porque, sabidamente, o Brasil é um país desigual, que seleciona apenas um extrato social para sofrer os impactos do aborto clandestino - sejam essas consequências sociais, penais, ou mesmo risco de morte”, acrescentou.

Por fim, é importante esclarecer que a decisão não significa a descriminalização do aborto no Brasil. “Deve-se analisar, de forma cautelosa, a evolução jurisprudencial e legislativa da questão, até que haja algum posicionamento definitivo”, pontua a advogada.

Entenda

O entendimento da primeira turma do STF é válido para um caso concreto que foi julgado na terça-feira. A decisão veio com base no voto do ministro Luís Roberto Barroso, que considerou que a criminalização do aborto, naquele caso, viola os direitos da mulher, à sua autonomia de escolha e também à sua integridade física e psíquica.

Barroso ainda pontuou que a criminalização não acontece em países desenvolvidos como Estados Unidos, Alemanha, França e Reino Unido, por exemplo.

“Em verdade, a criminalização confere uma proteção deficiente aos direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade”, afirmou.

O ministro considerou, consequentemente, a criminalização do aborto em casos nos quais a interrupção da gravidez ocorre após o primeiro trimestre da gestação. “Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno”, concluiu.

(Karen Lemos - Portal da Band)

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