segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Um retrato dos refugiados do Brasil
O drama dos refugiados vem, cada dia mais, comovendo o mundo. Não é por menos. No maior fluxo migratório desde a Segunda Guerra Mundial não faltam histórias impactantes e acontecimentos lamentáveis, como a morte do menino sírio Aylan Kurdi em uma praia turca.
Nesta semana, a presidente Dilma Rousseff discursou em assembleia na ONU cobrando de todos os países mais ação para amenizar essa crise. O Brasil é uma das nações que mais acolhe refugiados em seu território. Segundo dados divulgados mês passado pelo Ministério da Justiça, em 2014, o país possuía 8,4 mil refugiados.
“O Brasil tem se destacado na forma como recebe os refugiados”, avalia Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais da PUC São Paulo. Através do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), o Ministério da Justiça concede vistos especiais, facilitando a vinda. “Por outro lado, ainda falta preparo do governo para melhor recepcioná-los, como alguém que os receba no aeroporto, um tradutor, indicações de lugares onde possam ficar. Quem está fazendo esse papel é a própria sociedade através de iniciativas e ONGs.”
Três refugiados, com trajetórias bem diferentes, ressaltam a importância de receber pessoas que, por uma questão de sobrevivência, precisam deixar seus países e o quanto podemos aprender e engradecer com eles.
Guylain Mukendi está há quase dois anos no Brasil. Formado em contabilidade, ele é refugiado da República Democrática do Congo, onde atuava como professor de direito fiscal e finanças públicas.
Em quase 20 anos de uma violenta guerra civil, seis milhões de pessoas já morreram no Congo. O conflito é considerado o maior e mais sangrento desde a Segunda Guerra Mundial. Nesse cenário desolador, doenças, como malária e cólera, além de chacinas, estupros e sequestros de crianças são frequentes.
Era essa a realidade que Guylain conhecia. Tudo piorou ainda mais quando, em 2012, um tio de sua família foi assassinado. Intrigado com a execução, ele decidiu investigar o que aconteceu. “Por causa disso eu fui denunciado e preso pelo serviço secreto do Congo”, contou. Liberto do encarceramento, o medo não diminuiu. Em 2013, a escola na qual trabalhava foi invadida e alvejada por militares. “Graças a Deus consegui sair ileso. Depois disso, não tinha mais como ficar no país.”
Sua família precisou pagar US$ 10 mil para sua fuga. Apesar da dor de deixar seus familiares, uma sensação de alívio o invadiu logo que pisou em solo brasileiro. “Fiquei relaxado por ter conseguido salvar a minha vida e sair de uma situação difícil onde, a cada hora que passava, uma coisa ruim acontecia”, relatou.
No Congo, o pai de Guylain ainda tenta fugir. “Por causa de mim, ele perdeu o emprego dele e os militares confiscaram o seu passaporte para que ele não pudesse mais viajar. Ele está tentando tirar outro passaporte porque a vontade é de sair de lá. Está muito difícil para ele”, lamentou.
Enquanto tenta se adaptar a nova vida em São Paulo, Guylain está dando aulas de francês com foco na cultura africana através do projeto Abraço Cultural, que emprega solicitantes de refúgio no Brasil dentro dessa proposta.
Na capital paulista, ele se casou com uma compatriota e, juntos, tiveram o primeiro filho: um brasileiro. “O maior presente que o Brasil me deu foi o nascimento do Craig-André. O sentimento agora é de liberdade”, celebrou.
Desde 2013 no Brasil, o refugiado sírio Talal Al-tinawi tinha uma vida confortável em seu país. Trabalhava como engenheiro mecânico e tinha recursos para sustentar sua esposa, Ghazal, e seus filhos Riad e Yara. Com a chegada da guerra civil na Síria, que dura quatro anos e já deixou mais de 300 mil mortos, Talal precisou pedir refúgio, principalmente porque, devido ao fato de possuir o nome idêntico a uma pessoa que tinha problemas com o governo, foi preso injustamente.
“Fiquei três meses e meio na prisão. Foi muito ruim, muito difícil não só para mim, mas para minha família também. Eles ficaram sem notícias por um tempo, só depois de três meses consegui fazer contato com a minha esposa”, recordou.
Quando deixou o presídio, Talal se refugiou com a família no Líbano, onde a situação também é delicada. Lá, ao menos, conseguiram se planejar e procurar um país seguro para ir. “Comecei a procurar pelas embaixadas de países que pudessem nos receber”, contou. “Tentamos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Europa. Todos pedem tantos documentos que o pedido de refúgio se torna impossível.”
Naquela mesma época, o Conare autorizou a concessão de visto brasileiro para refugiados sírios que tentavam escapar da guerra. Recentemente, o órgão prorrogou essa autorização, em virtude do agravo do conflito - intensificado também pelo avanço do Estado Islâmico na região.
“Eu gosto do Brasil, quero ficar aqui”, ressalta Talal que, para se manter no país, começou a cozinhar os pratos típicos da Síria. A ideia partiu de voluntários do Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), que o ajudaram desde o início. “Descobri que os brasileiros gostam de comida árabe e gostam de novidades, então sempre tento fazer receitas novas.”
O sonho do refugiado agora é abrir um restaurante em São Paulo, onde mora, para ampliar o negócio que, por enquanto, é feito por encomendas através da sua página do Facebook. Para alcançar essa nova etapa, ele criou uma “vaquinha” online que, na semana passada, atingiu a meta de R$ 60 mil.
Na casa de Talal, a família toda ajuda no preparo das comidas por encomenda e também no cuidado do mais novo membro do clã: a pequena Sara, brasileira da prole e símbolo da esperança de quem precisou deixar tudo que tinha para salvar a própria vida.
Naturalizada brasileira desde 1972, a escritora Ludmila Saharovsky nasceu no campo de refugiados Lager Parsh, em Salzburg, na Áustria. Seus pais eram russos e fugiram da Segunda Guerra Mundial. Em 1948, chegaram ao Brasil como imigrantes, já que o Estatuto dos Refugiados de 1951 ainda não estava em vigor no país.
Ludmila tem poucas lembranças daquela época porque era apenas uma criança. O que ela não esquece, no entanto, é a amargura que todo refugiado sente ao deixar seu país de origem, muitas vezes imerso na guerra. “Não me lembro de um momento de felicidade real, claro que tinha brincadeiras e risadas, mas aquela tristeza pela separação da família foi uma coisa que ficou muito marcada na minha vida”, lembra.
No Brasil, ela e sua família desembarcaram como apátridas, ou seja, sem uma pátria definida. “Isso aconteceu porque meus pais tiveram que destruir os documentos deles para não serem repatriados, pois corriam o risco de serem fuzilados na Rússia”, conta. Sem ser considerada russa e nem austríaca, demorou 20 anos para que Ludmila provasse que existia não só fisicamente, mas também legalmente. “Quando isso ocorreu, eu já era casada e tinha quatro filhos brasileiros.”
Quando seus avôs ainda eram vivos, a jovem Ludmila prometeu um dia voltar à Rússia para tentar descobrir o que aconteceu com os familiares que lá ficaram e, posteriormente, escrever um livro sobre a história de seus entes. A promessa resultou no livro “Tempo Submerso”, um relato de sua viagem para o arquipélago de Solovitskie Ostrova. Lá, [Josef] Stalin, líder da União Soviética de 1922 até 1953, construiu o primeiro Gulag, como eram chamados os campos de concentração de presos políticos e pessoas que se opunham ao regime comunista. Pelo avô, Ludmila soube que parte de sua família foi enviada para lá.
“Ao chegar lá, comecei a entrevistar algumas pessoas que, assim como eu, também foram buscar seus mortos. Como resultado, enchi um caderno com vários depoimentos desses. No fim, eu que tinha viajado em busca de oito mortos, encontrei 350 mil identificados e aceitos pelo governo russo”, afirma.
Para Saharovsky, o que realmente aconteceu na União Soviética permanecerá um mistério. “Os russos carregam uma culpa muito grande por terem assassinados seus próprios compatriotas”, explica. A escritora, porém, espera que um dia a verdade venha à tona; não só sobre o seu passado, mas sobre as atrocidades pelas quais passaram todos os refugiados na expectativa de que, um dia, o mundo, finalmente, aprenda com os seus erros e não os repita nunca mais.
(Karen Lemos - Portal da Band)
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