sábado, 31 de outubro de 2015

Assim como a Finlândia, Brasil também tem projeto de renda básica


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Com o apoio de 70% da população, a Finlândia pretende testar no ano de 2017 um sistema em que todos os habitantes vão receber um salário, não importando o quanto ganhem em seus empregos e nem mesmo se de fato trabalham. Ano que vem, a Suíça realizará um referendo para consultar sua população e decidir se também testará esse conceito.

A ideia parece “boa demais para ser verdade”, mas algumas cidades que adotaram um sistema parecido acumulam resultados positivos. Já vamos a elas. Antes, é interessante lembrar que aqui, no Brasil, desde 2004 vigora a lei n° 10.835/2004, de autoria do então senador, hoje secretário de Direitos Humanos de São Paulo, Eduardo Suplicy, que institui o Renda Básica Cidadania.

Pelo programa, qualquer cidadão brasileiro – qualquer mesmo, do mais pobre até Dilma Rousseff, Silvio Santos e Pelé – receberá uma renda fixa para cobrir suas necessidades básicas de sobrevivência. Estrangeiros com mais de cinco anos no país também seriam contemplados.

O processo é gradual, iniciado pelos mais necessitados, a exemplo do que é realizado no Bolsa Família. Ao contrário do programa do Governo Lula, o Renda Básica seria menos condicionado, com recursos podendo derivar de várias fontes, como impostos, concessões de recursos naturais, loterias, entre outros.

O projeto nunca saiu completamente do papel. No momento, encontra-se em processo de regularização, estágio no qual Suplicy tenta dar andamento. “Desde junho de 2013 eu tenho escrito para que a presidente Dilma Rousseff possa me receber para conversar sobre minha proposta de regulamentação do Renda Básica, que é constituir um grupo de trabalho para estudar as próximas etapas do programa”, relatou Suplicy ao Portal da Band.

Já foram 25 cartas. Enquanto conversava com a reportagem, o secretário redigia uma nova carta, desta vez citando a iniciativa da Finlândia.

Na opinião de Suplicy, o Renda Básica é a saída, por exemplo, para a crise econômica que o Brasil atualmente se encontra. “O grande economista Philippe Van Parijs escreveu, em março de 2012, para o jornal francês Le Monde que a melhor maneira de resolver a crise europeia seria instituindo uma renda para todos europeus que, no momento em que passassem a ter acesso a esse dinheiro, teriam condições de resolver seus problemas de desemprego, acarretando em uma melhor estabilidade econômica e social”, citou.

O secretário tem o Renda Básica Cidadania como o projeto de sua vida. Até hoje, ele realiza palestras (“média de uma palestra por dia”, contou) expondo as vantagens de seu programa. “Quando termino, todos concordam e aplaudem a ideia. Tenho a convicção de que, quando bem explicada as vantagens do conceito para o povo brasileiro, a maioria será a favor.”

Não é o que enxerga a professora de economia da PUC São Paulo, Rosa Maria Marques. “Acredito que [o Renda Básica] teria uma resistência enorme da sociedade brasileira. Somente a concessão do Bolsa Família já gerou uma repulsa da classe média, por exemplo”, opina. Rosa Maria também aponta a falta de condições do país de financiar um projeto de tamanha complexidade. “Ao meu ver, o financiamento teria que partir de setores mais ricos da população, o que implica em reforma tributária, taxação de grandes fortunas, enfim, coisas que o Brasil não têm hoje.”

Na prática funciona? 

É difícil imaginar a aplicação do Renda Básica Cidadania em um país do tamanho do Brasil. A Finlândia, talvez, nos dará respostas. Fato é que algumas cidades, como Utrecht, na Holanda, de 600 habitantes, adotou a concepção e apresentou proveitos.

O maior exemplo talvez seja o do estado norte-americano do Alasca, que passou a distribuir 6% de seu PIB igualmente a todos os seus habitantes. Em 2005, o estado se tornou o mais igualitário dos Estados Unidos.

Há ainda outros exemplos. No estado indiano de Madhya Pradesh, algumas vilas rurais oferecem um pagamento a seus quase seis mil habitantes. Indicadores mostram que setores como saúde e educação apresentaram melhoras desde então.

Já na vila rural de Otjivero, na africana Namíbia, onde a população recebe o equivalente a R$ 25, a desistência escolar, que era 40%, zerou. Com esses dados em mãos, Suplicy tenta ser bem-sucedido com um projeto de mais de dez anos jogado ao limbo.

“Quero oferecer no Brasil uma oportunidade para aquela jovem que, por falta de condições de dar o sustento em casa, vende o seu corpo; ou então para o jovem que, assim como diz a música ‘O Homem na Estrada’, dos Racionais MC's, se torna um ‘aviãozinho’ do narcotráfico pelas mesmas razões. A oportunidade que menciono é de dizer ‘não’ a essas únicas alternativas de sobrevivência, e oferecer uma chance de esperar por algo melhor. É nesse sentido que o Renda Básica elevará a dignidade de todos”, conclui Suplicy.

(Karen Lemos - Portal da Band)

sábado, 24 de outubro de 2015

Homossexuais ainda são impedidos de doar sangue

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Em setembro, a Argentina se juntou a países como Chile, Espanha, Itália, México, África do Sul e até a conservadora Rússia e retirou uma restrição que dificultava a doação de sangue por homossexuais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), outras nações, como Alemanha, Dinamarca, França, Israel, Suíça e o Brasil, por exemplo, mantêm esse veto.

O estigma da década de 80, quando o vírus HIV era associado aos homens gays, prevalece até hoje. Mais de 50 países não permitem que homossexuais doem sangue em seus hemocentros. No Brasil, a resolução 153 da Anvisa considera que “homens que fizeram sexo com outros homens nos 12 meses que antecedem a triagem clínica devem ser considerados inaptos temporariamente para a doação de sangue”.

Embora a agência, vinculada ao Ministério da Saúde, deixe claro que a seleção clínica “não seja baseada em preconceitos, idiossincrasias ou conceitos morais”, na prática, a restrição esbarra exatamente nisso. Em 2014, João* tinha um parente internado que precisava de sangue. Ele tentou doar no mesmo hospital onde o familiar se encontrava, mas, logo na entrevista, foi dispensado, não sem antes ouvir injúrias.

“Eu estava em um relacionamento estável há mais de 12 meses, com todas minhas relações sexuais ocorrendo com preservativo. Mesmo assim, a médica quis impedir minha doação e, entre outros abusos, tive que ouvir que o sangue de homossexuais era 'ruim' e que eu era uma exceção entre os gays ‘por não ser promíscuo’”, disse. “Desde então, nunca mais doei sangue com medo de passar pela mesma humilhação.”

Para Denise Auad, professora da Faculdade de Direito de São Bernardo e advogada especialista em Direitos Humanos, o preconceito já começa no questionamento sobre a sexualidade do possível doador. “É preciso desmistificar essa ideia de que o homossexual é sempre promíscuo. Existem casais homoafetivos juntos há muitos anos, que formam família, adotam crianças e lutam pelos seus direitos”, declarou. “O que o hospital precisa garantir é que a pessoa esteja saudável.”

Assim como João, vítimas de preconceito em hemocentros podem recorrer à Justiça. “É possível entrar com uma ação e pedir indenização por danos morais. A dificuldade disso é conseguir provas. Seria interessante que a vítima obtivesse, por escrito, uma prova de que foi impedida de doar sangue. Caso ela consiga reunir testemunhas que possam confirmar as ofensas, melhor ainda”, explicou a advogada. “Essa resolução fere a Constituição Federal, que prima pelo princípio da igualdade. Nesse caso, é possível entrar em contato com o Ministério Público, reunir assinaturas e pedir a revogação dessa resolução”, acrescentou.

A campanha "Igualdade na Veia", do Grupo Dignidade com apoio do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), entrou com um pedido para reavaliar a resolução junto ao Conselho Nacional de Saúde e ao Ministério da Saúde. Uma petição online foi criada e já conta com mais 13 mil assinaturas. “A população de homossexuais assumidos no Brasil passa de 8% e as doações de sangue são menores que 2%. Essa restrição, além de preconceituosa, faz com que as filas nos bancos de sangue não diminua e impede que vidas sejam salvas”, destacou o grupo.

Estados Unidos 

Assim como no Brasil, os Estados Unidos também mantêm a restrição de 12 meses sem relação sexual para homens gays. Warlen Piedade, que atualmente mora nos EUA, passou por isso em ambos países. “Tenho um parceiro há mais de um ano e, em São Paulo, fui impedido de doar sangue por ser homossexual. Só poderia doar se ficasse 12 meses sem ter relações sexuais com meu namorado”, contou. “Aqui, nos Estados Unidos, tentei doar já sabendo que não deixariam. Eu recebi um questionário no qual, em uma das perguntas, precisava responder como identificava minha sexualidade e, caso fosse homossexual, eles avisavam da existência de uma lei que me impediria de continuar no processo.”


Supervisor do pronto-socorro do Emílio Ribas, o médico infectologista Ralcyon Teixeira definiu a resolução da Anvisa como um exagero. “O hospital precisa avaliar a pessoa como um todo. Pela resolução, você apenas enxerga que a pessoa é homossexual e, portanto, inapta a doar sangue; não é por aí.”

Para Teixeira, a seleção clínica poderia ser diferente, dispensando aqueles que fizeram sexo sem proteção em um curto período - o que excluiria casais que transam com preservativo ou que mantém um relacionamento estável. Além da palavra do doador, os exames garantiriam a segurança do processo.

“Os exames hoje estão muito mais sensíveis. Antigamente, a janela imunológica do HIV, por exemplo, era de dois a três meses. Atualmente, em um teste mais convencional, seria apenas de quatro semanas. Visto que nossos exames estão mais modernos, essa entrevista com o candidato a doação de sangue poderia facilmente ser realizada de uma forma mais humana”, ressaltou.

*O entrevistado preferiu não se identificar

(Karen Lemos - Portal da Band)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Substância que combate o câncer divide opiniões

 
Marcos Santos/Divulgação/USP

Filho de uma senhora de 68 anos com câncer no pâncreas, o advogado Dennis Cincinatus conseguiu permissão judicial para adquirir cápsulas de fosfoetanolamina, droga experimental que virou notícia depois que pacientes, assim como sua mãe, relataram melhoras no quadro clínico após o seu uso.

“Minha mãe teve um prognóstico de apenas dez dias de vida, e o médico suspendeu o tratamento por quimioterapia”, relatou Dennis. “Já tem mais de um mês que ela está viva depois de ter começado a tomar fosfoetanolamina; anteontem mesmo, ela conseguiu levantar da cama e caminhar um pouco, algo que ela não fazia antes.”

Produzida pelo Instituto de Química de São Paulo da USP, a substância está sendo apontada como uma possibilidade alternativa no tratamento para pacientes com câncer.

A grande questão gira em torno de sua regulamentação. A Anvisa, agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, não analisou sua segurança e eficácia. Em nota, a agência ressaltou que a substância, testada em ratos de laboratório pelo IQSC, não passou por nenhum experimento em seres humanos. “Antes de qualquer medicamento ser disponibilizado para uso no Brasil, é necessária a avaliação de ensaios clínicos”. Sem a regulamentação, a venda ou distribuição da fosfoetanolamina é uma prática irregular.

Diante da polêmica, o Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu que a USP distribuísse a droga. Também em nota, a universidade disse que vai investigar de que forma essa distribuição era feita. “A USP estuda a possibilidade de denunciar, ao Ministério Público, os profissionais que estão se beneficiando do desespero e da fragilidade das famílias e dos pacientes”, afirma em comunicado.

No início deste mês, pacientes e parentes de pacientes – como Dennis – entraram com um pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal e conseguiram, através de uma decisão do ministro Edson Fachin, derrubar a proibição do TJ de SP. “A gente decidiu ir ao STF por entender que a decisão anterior era uma afronta ao direito à vida e à dignidade da pessoa, garantido pela Constituição Federal”, explica o advogado.

Embora relatos como esse deem conta de uma contribuição da fosfoetanolamina no tratamento de pacientes com câncer, oncologistas alertam para possíveis riscos. “Estamos falando de uma substância química que não pode ser considerada medicamento em função de uma série de situações. Não sabemos, por exemplo, quais são seus efeitos colaterais, efeitos em ação conjunta com outros tipos de drogas e, o mais importante de tudo, não dá para garantir seu impacto – positivo ou não – na doença”, afirma Charles Andreé Joseph de Pádua, médico oncologista e diretor do Cetus.

“Além disso, quando falamos de câncer, temos que levar em conta seus mais diferentes subtipos; a quantidade é vasta, em torno de três mil doenças. É preciso entender de qual câncer estamos falando para tratá-lo da melhor forma.”

Questionado sobre os relatos de pacientes que alegam impactos positivos no tratamento com o uso da fosfoetanolamina, o oncologista aponta duas possíveis explicações: uso de uma outra medicação aliada a fosfoetanolamina que auxiliou no tratamento, ou então, um efeito placebo, quando o paciente deposita tanta esperança em determinada substância que acaba gerando bons resultados.

“Eu espero que um dia, comprovado sua eficácia, possamos usar a fosfoetanolamina no tratamento contra o câncer. Até lá, é imprescindível ressaltar a importância de um acompanhamento médico em qualquer caso. É uma tristeza ver pessoas em tal estado de fragilidade apelando para alternativas que ainda não podem ser comprovadas como benéficas”, completa.

Uma audiência pública está agendada para o dia 29 deste mês no Senado Federal, na qual serão discutidas as possibilidades de se estudar a fosfoetanolamina sintética. A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), em conjunto com duas outras comissões temáticas da Casa, estarão à frente da sessão.

(Karen Lemos - Portal da Band)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Um retrato dos refugiados do Brasil


O drama dos refugiados vem, cada dia mais, comovendo o mundo. Não é por menos. No maior fluxo migratório desde a Segunda Guerra Mundial não faltam histórias impactantes e acontecimentos lamentáveis, como a morte do menino sírio Aylan Kurdi em uma praia turca.

Nesta semana, a presidente Dilma Rousseff discursou em assembleia na ONU cobrando de todos os países mais ação para amenizar essa crise. O Brasil é uma das nações que mais acolhe refugiados em seu território. Segundo dados divulgados mês passado pelo Ministério da Justiça, em 2014, o país possuía 8,4 mil refugiados.

“O Brasil tem se destacado na forma como recebe os refugiados”, avalia Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais da PUC São Paulo. Através do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), o Ministério da Justiça concede vistos especiais, facilitando a vinda. “Por outro lado, ainda falta preparo do governo para melhor recepcioná-los, como alguém que os receba no aeroporto, um tradutor, indicações de lugares onde possam ficar. Quem está fazendo esse papel é a própria sociedade através de iniciativas e ONGs.”

Três refugiados, com trajetórias bem diferentes, ressaltam a importância de receber pessoas que, por uma questão de sobrevivência, precisam deixar seus países e o quanto podemos aprender e engradecer com eles.



Guylain Mukendi está há quase dois anos no Brasil. Formado em contabilidade, ele é refugiado da República Democrática do Congo, onde atuava como professor de direito fiscal e finanças públicas.

Em quase 20 anos de uma violenta guerra civil, seis milhões de pessoas já morreram no Congo. O conflito é considerado o maior e mais sangrento desde a Segunda Guerra Mundial. Nesse cenário desolador, doenças, como malária e cólera, além de chacinas, estupros e sequestros de crianças são frequentes.

Era essa a realidade que Guylain conhecia. Tudo piorou ainda mais quando, em 2012, um tio de sua família foi assassinado. Intrigado com a execução, ele decidiu investigar o que aconteceu. “Por causa disso eu fui denunciado e preso pelo serviço secreto do Congo”, contou. Liberto do encarceramento, o medo não diminuiu. Em 2013, a escola na qual trabalhava foi invadida e alvejada por militares. “Graças a Deus consegui sair ileso. Depois disso, não tinha mais como ficar no país.”

Sua família precisou pagar US$ 10 mil para sua fuga. Apesar da dor de deixar seus familiares, uma sensação de alívio o invadiu logo que pisou em solo brasileiro. “Fiquei relaxado por ter conseguido salvar a minha vida e sair de uma situação difícil onde, a cada hora que passava, uma coisa ruim acontecia”, relatou.

No Congo, o pai de Guylain ainda tenta fugir. “Por causa de mim, ele perdeu o emprego dele e os militares confiscaram o seu passaporte para que ele não pudesse mais viajar. Ele está tentando tirar outro passaporte porque a vontade é de sair de lá. Está muito difícil para ele”, lamentou. 

Enquanto tenta se adaptar a nova vida em São Paulo, Guylain está dando aulas de francês com foco na cultura africana através do projeto Abraço Cultural, que emprega solicitantes de refúgio no Brasil dentro dessa proposta.

Na capital paulista, ele se casou com uma compatriota e, juntos, tiveram o primeiro filho: um brasileiro. “O maior presente que o Brasil me deu foi o nascimento do Craig-André. O sentimento agora é de liberdade”, celebrou.



Desde 2013 no Brasil, o refugiado sírio Talal Al-tinawi tinha uma vida confortável em seu país. Trabalhava como engenheiro mecânico e tinha recursos para sustentar sua esposa, Ghazal, e seus filhos Riad e Yara. Com a chegada da guerra civil na Síria, que dura quatro anos e já deixou mais de 300 mil mortos, Talal precisou pedir refúgio, principalmente porque, devido ao fato de possuir o nome idêntico a uma pessoa que tinha problemas com o governo, foi preso injustamente.

“Fiquei três meses e meio na prisão. Foi muito ruim, muito difícil não só para mim, mas para minha família também. Eles ficaram sem notícias por um tempo, só depois de três meses consegui fazer contato com a minha esposa”, recordou.

Quando deixou o presídio, Talal se refugiou com a família no Líbano, onde a situação também é delicada. Lá, ao menos, conseguiram se planejar e procurar um país seguro para ir. “Comecei a procurar pelas embaixadas de países que pudessem nos receber”, contou. “Tentamos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Europa. Todos pedem tantos documentos que o pedido de refúgio se torna impossível.”

Naquela mesma época, o Conare autorizou a concessão de visto brasileiro para refugiados sírios que tentavam escapar da guerra. Recentemente, o órgão prorrogou essa autorização, em virtude do agravo do conflito - intensificado também pelo avanço do Estado Islâmico na região.

“Eu gosto do Brasil, quero ficar aqui”, ressalta Talal que, para se manter no país, começou a cozinhar os pratos típicos da Síria. A ideia partiu de voluntários do Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), que o ajudaram desde o início. “Descobri que os brasileiros gostam de comida árabe e gostam de novidades, então sempre tento fazer receitas novas.”

O sonho do refugiado agora é abrir um restaurante em São Paulo, onde mora, para ampliar o negócio que, por enquanto, é feito por encomendas através da sua página do Facebook. Para alcançar essa nova etapa, ele criou uma “vaquinha” online que, na semana passada, atingiu a meta de R$ 60 mil. 

Na casa de Talal, a família toda ajuda no preparo das comidas por encomenda e também no cuidado do mais novo membro do clã: a pequena Sara, brasileira da prole e símbolo da esperança de quem precisou deixar tudo que tinha para salvar a própria vida.



Naturalizada brasileira desde 1972, a escritora Ludmila Saharovsky nasceu no campo de refugiados Lager Parsh, em Salzburg, na Áustria. Seus pais eram russos e fugiram da Segunda Guerra Mundial. Em 1948, chegaram ao Brasil como imigrantes, já que o Estatuto dos Refugiados de 1951 ainda não estava em vigor no país.

Ludmila tem poucas lembranças daquela época porque era apenas uma criança. O que ela não esquece, no entanto, é a amargura que todo refugiado sente ao deixar seu país de origem, muitas vezes imerso na guerra. “Não me lembro de um momento de felicidade real, claro que tinha brincadeiras e risadas, mas aquela tristeza pela separação da família foi uma coisa que ficou muito marcada na minha vida”, lembra.

No Brasil, ela e sua família desembarcaram como apátridas, ou seja, sem uma pátria definida. “Isso aconteceu porque meus pais tiveram que destruir os documentos deles para não serem repatriados, pois corriam o risco de serem fuzilados na Rússia”, conta. Sem ser considerada russa e nem austríaca, demorou 20 anos para que Ludmila provasse que existia não só fisicamente, mas também legalmente. “Quando isso ocorreu, eu já era casada e tinha quatro filhos brasileiros.”

Quando seus avôs ainda eram vivos, a jovem Ludmila prometeu um dia voltar à Rússia para tentar descobrir o que aconteceu com os familiares que lá ficaram e, posteriormente, escrever um livro sobre a história de seus entes. A promessa resultou no livro “Tempo Submerso”, um relato de sua viagem para o arquipélago de Solovitskie Ostrova. Lá, [Josef] Stalin, líder da União Soviética de 1922 até 1953, construiu o primeiro Gulag, como eram chamados os campos de concentração de presos políticos e pessoas que se opunham ao regime comunista. Pelo avô, Ludmila soube que parte de sua família foi enviada para lá.

“Ao chegar lá, comecei a entrevistar algumas pessoas que, assim como eu, também foram buscar seus mortos. Como resultado, enchi um caderno com vários depoimentos desses. No fim, eu que tinha viajado em busca de oito mortos, encontrei 350 mil identificados e aceitos pelo governo russo”, afirma.

Para Saharovsky, o que realmente aconteceu na União Soviética permanecerá um mistério. “Os russos carregam uma culpa muito grande por terem assassinados seus próprios compatriotas”, explica. A escritora, porém, espera que um dia a verdade venha à tona; não só sobre o seu passado, mas sobre as atrocidades pelas quais passaram todos os refugiados na expectativa de que, um dia, o mundo, finalmente, aprenda com os seus erros e não os repita nunca mais.

(Karen Lemos - Portal da Band)