Divulgação
Em setembro, a Argentina se juntou a países como Chile, Espanha, Itália, México, África do Sul e até a conservadora Rússia e retirou uma restrição que dificultava a doação de sangue por homossexuais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), outras nações, como Alemanha, Dinamarca, França, Israel, Suíça e o Brasil, por exemplo, mantêm esse veto.
O estigma da década de 80, quando o vírus HIV era associado aos homens gays, prevalece até hoje. Mais de 50 países não permitem que homossexuais doem sangue em seus hemocentros. No Brasil, a resolução 153 da Anvisa considera que “homens que fizeram sexo com outros homens nos 12 meses que antecedem a triagem clínica devem ser considerados inaptos temporariamente para a doação de sangue”.
Embora a agência, vinculada ao Ministério da Saúde, deixe claro que a seleção clínica “não seja baseada em preconceitos, idiossincrasias ou conceitos morais”, na prática, a restrição esbarra exatamente nisso. Em 2014, João* tinha um parente internado que precisava de sangue. Ele tentou doar no mesmo hospital onde o familiar se encontrava, mas, logo na entrevista, foi dispensado, não sem antes ouvir injúrias.
“Eu estava em um relacionamento estável há mais de 12 meses, com todas minhas relações sexuais ocorrendo com preservativo. Mesmo assim, a médica quis impedir minha doação e, entre outros abusos, tive que ouvir que o sangue de homossexuais era 'ruim' e que eu era uma exceção entre os gays ‘por não ser promíscuo’”, disse. “Desde então, nunca mais doei sangue com medo de passar pela mesma humilhação.”
Para Denise Auad, professora da Faculdade de Direito de São Bernardo e advogada especialista em Direitos Humanos, o preconceito já começa no questionamento sobre a sexualidade do possível doador. “É preciso desmistificar essa ideia de que o homossexual é sempre promíscuo. Existem casais homoafetivos juntos há muitos anos, que formam família, adotam crianças e lutam pelos seus direitos”, declarou. “O que o hospital precisa garantir é que a pessoa esteja saudável.”
Assim como João, vítimas de preconceito em hemocentros podem recorrer à Justiça. “É possível entrar com uma ação e pedir indenização por danos morais. A dificuldade disso é conseguir provas. Seria interessante que a vítima obtivesse, por escrito, uma prova de que foi impedida de doar sangue. Caso ela consiga reunir testemunhas que possam confirmar as ofensas, melhor ainda”, explicou a advogada. “Essa resolução fere a Constituição Federal, que prima pelo princípio da igualdade. Nesse caso, é possível entrar em contato com o Ministério Público, reunir assinaturas e pedir a revogação dessa resolução”, acrescentou.
A campanha "Igualdade na Veia", do Grupo Dignidade com apoio do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), entrou com um pedido para reavaliar a resolução junto ao Conselho Nacional de Saúde e ao Ministério da Saúde. Uma petição online foi criada e já conta com mais 13 mil assinaturas. “A população de homossexuais assumidos no Brasil passa de 8% e as doações de sangue são menores que 2%. Essa restrição, além de preconceituosa, faz com que as filas nos bancos de sangue não diminua e impede que vidas sejam salvas”, destacou o grupo.
Estados Unidos
Assim como no Brasil, os Estados Unidos também mantêm a restrição de 12 meses sem relação sexual para homens gays. Warlen Piedade, que atualmente mora nos EUA, passou por isso em ambos países. “Tenho um parceiro há mais de um ano e, em São Paulo, fui impedido de doar sangue por ser homossexual. Só poderia doar se ficasse 12 meses sem ter relações sexuais com meu namorado”, contou. “Aqui, nos Estados Unidos, tentei doar já sabendo que não deixariam. Eu recebi um questionário no qual, em uma das perguntas, precisava responder como identificava minha sexualidade e, caso fosse homossexual, eles avisavam da existência de uma lei que me impediria de continuar no processo.”
Supervisor do pronto-socorro do Emílio Ribas, o médico infectologista Ralcyon Teixeira definiu a resolução da Anvisa como um exagero. “O hospital precisa avaliar a pessoa como um todo. Pela resolução, você apenas enxerga que a pessoa é homossexual e, portanto, inapta a doar sangue; não é por aí.”
Para Teixeira, a seleção clínica poderia ser diferente, dispensando aqueles que fizeram sexo sem proteção em um curto período - o que excluiria casais que transam com preservativo ou que mantém um relacionamento estável. Além da palavra do doador, os exames garantiriam a segurança do processo.
“Os exames hoje estão muito mais sensíveis. Antigamente, a janela imunológica do HIV, por exemplo, era de dois a três meses. Atualmente, em um teste mais convencional, seria apenas de quatro semanas. Visto que nossos exames estão mais modernos, essa entrevista com o candidato a doação de sangue poderia facilmente ser realizada de uma forma mais humana”, ressaltou.
*O entrevistado preferiu não se identificar
(Karen Lemos - Portal da Band)
Nenhum comentário:
Postar um comentário