terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ocupação retrata mente inquieta de cineasta

Mostra sobre Rogério Sganzerla mergulha em seu universo criativo através de objetos pessoais e obras restauradas













Dando continuidade a boa intenção do Itaú Cultural aplicada em seu projeto de “Ocupações”, após o dramaturgo Zé Celso e o músico Chico Science, entre os mais destacáveis, chega, pela primeira vez em São Paulo, uma mostra dedicada à obra inquieta e contraversiva de uma grande cineasta de nossa história, Rogério Sganzerla.

Apresentar um trabalho denso de Sganzerla para um público que, mesmo dada sua contribuição cinematográfica, pouco conhece ou até já ouviu falar de seu nome (quando não, porque sua obra mais conhecida, “O Bandido da Luz Vermelha”, foi citada), veio a se tornar um grande desafio para Helena Ignez, fiel companheira das telas e da vida do cineasta, que, juntamente com Joel Pizzini, se encarregou da curadoria da ocupação.

“Estamos trazendo o íntimo da atividade, do trabalho dele. É uma contribuição mostrar o que foi Sganzerla para o público, principalmente para essa juventude”, alega Helena, que atualmente dirige seu segundo longa-metragem “dentro desse filão experimental que foi o cinema de Sganzerla”, complementa.

O primeiro longa da atriz baiana, que se destacou também em filmes de Glauber Rocha, veio a partir de um projeto emblemático, quase que uma promessa e homenagem pessoal à alma do cineasta, morto em 2004 por conta de um tumor no cérebro. “Luz nas Trevas”, com roteiro de Sganzerla e olhar supervisor de Helena, trará de volta às telas todo o cinismo de João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, que virou sinônimo de contracultura em 1968, batizando o movimento Cinema Marginal Brasileiro.

Cenas exclusivas de “Luz nas Trevas”, no entanto, que só será finalizado no mês de agosto para entrar no circuito nacional de festivais, poderá ser apreciado pelo público que visitar a ocupação. Entre outras tantas novidades, há roteiros originais manuscritos, como o clássico “A Mulher de Todos”, com brilhantismo de Helena como protagonista (este, estará disponível em fac smile, que permite manusear os escritos), além de filmes desaparecidos que compõe, ainda, a seleção.

“São obras redescobertas, encobertas no período da Ditadura Brasileira. Em uma cidade como São Paulo, esse espaço, com fotos, sonoras e debates, traz uma melhor retrospectiva”, conta Sinai, filha de Sganzerla, que contribuiu no critério de seleção de obras, objetos e referências do universo criativo e pessoal do pai.












Sobre trabalhos desaparecidos e, posteriormente, recuperados - principalmente na pré-montagem da Ocupação, Sinai ainda ressalta: “Houve uma preocupação enorme, por parte nossa, de digitalização. Não queríamos perder mais nada do rico material do meu pai”. Muitas das pesquisas, conta Sinai, para a seleção de obras contou com o acervo da produtora Mercury, fundada por Sganzerla e que atualmente tem Helena no comando.

Entre os filmes recuperados estão “Carnaval na Lama”, com sequências rodadas nos anos 1970, contando com a participação dos músicos Jorge Mautnet e Jards Macalé; “Fora do Baralho”, um road-movie inusitado que retrata uma viagem de Sganzerla e Helena pelo Deserto do Saara; e ainda um documentário intitulado “Newton Cavalcanti: A Alma do Povo Vista pelo Artista”, que surpreendeu a própria família do realizador, que, até então, desconhecia o material.

“Você tem toda uma questão de ambiente, luz e cores para recriar o mundo criativo dele: seus interesses,signos, referências”, enumera Joel Pizzini, cineasta e curador das mostras da ocupação que tem cenografia assinada por Valdy Lopes.

Os signos, dos quais Pizzini se refere, são representados, muitas vezes, com a possibilidade de interação com o público. Das referências pessoais, a ver com personalidades como Oswald de Andrade, Noel Rosa, Orson Welles e até Jimi Hendrix, são dispostas em forma de objetos pessoais, coletados por Sganzerla ao longo da vida, trabalhos fílmicos (como é o caso de “Isto É Noel” e “Noel por Noel”, sobre o compositor boêmio), e até uma guitarra, menção a Hendrix, que pode ser “arranhada” pelos visitantes.














“O Rogério adotou São Paulo, foi aqui que ele criou ‘O Bandido [da Luz Vermelha]’ e ‘A Mulher de Todos’. Colocando tudo isso nesse espaço de arte, temos um registro fiel do que foi a obra de Sganzerla”, conclui Pizzini.

Noite de conversas

Debates também pautaram a homenagem ao cineasta brasileiro. Helena Ignez, a atriz Maria Gladys, o pesquisador italiano Roberto Turigliatto e até o crítico da “Cahiers du Cinéma”, Bill Krohn, subiram a mesa de debates.

No primeiro dia de conversa, Julio Bressane (fundador, ao lado de Sganzerla, de uma produtora importantíssima, que realizou os principais filmes do cinema marginal: a Belair), comentou sobre o período de “hiato criativo” do seu companheiro de arte, que ocorreu entre os anos 1971 a 1977.

O cineasta, de renome do cinema marginal brasileiro, mencionou uma citação de Sganzerla que resume sua pausa, caracterizando sua personalidade forte. “Nenhum segundo eu parei, só fui melhorando... para pior!”. Helena Ignez também falou abertamente sobre o período negro: “Rogério sofreu todo tipo de repressão, calúnias, inveja”.













Para o grande encontro, familiares também estiveram presentes tanto na abertura da ocupação, como em boa parte dos debates. Compareceram Djin, outra filha de Sganzerla com Helena e que está no elenco de “Luz nas Trevas” (no papel que, em 1968, era o de sua mãe), o irmão do cineasta, Albino, e a mãe Zenaide, que pareceu encantada com um retrato fiel à mente irreverente de seu filho.

“Como mãe, foi o maior presente de vida. As pessoas, aqui, me rodearam com muito carinho”, pontuou.

Fechando a grande noite, Zenaide relembrou os anos rebeldes de adolescência do filho, época em que trabalhava como crítico do cinema para o suplemento literário do jornal “O Estado de S. Paulo” e entendeu, mais claro do que nunca, aquela paixão irremediável do garoto. “Meu filho sempre teve essa vocação”, concluiu.

E bem como o próprio Sganzerla dizia, apoiado nas ideias revolucionários de quem tanto admirava - Oswald de Andrade; uma vocação para um cinema que deve ser visto com “olhos livres”. Ou então, passando a palavra para Helena Ignez: uma “marginalização total, que ia contra a maré da ignorância”.

(Karen Lemos)

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