Maria Aparecida Feier e sua filha Cibele (arquivo pessoal)
Cibele, hoje com 22 anos, estudou em escola particular até os seus 17 anos. Depois disso, a escola passou a exigir que a mãe, Maria Aparecida Feier, pagasse uma auxiliar que acompanhasse sua filha durante as aulas. O custo disso era quase o valor da mensalidade. "No início eu aceitei pagar porque era a única escola particular que aceitava minha filha; outras escolas do meu bairro a recusaram por ser autista", relata.
Sem conseguir pagar pelos gastos adicionais a longo prazo, Maria tirou Cibele, que era uma aluna exemplar, da escola e a colocou em outra que trabalha exclusivamente com crianças especiais. "Hoje a Cibele vê a irmã dela e todos os amigos indo para a antiga escola e fica triste que não pode ir junto."
Para mudar esse cenário, Maria cursou pedagogia, se especializou em neuropsicopedagogia e trabalhou no lugar dos profissionais que sugeriram que sua filha não seria capaz de continuar os estudos sem um acompanhamento. "Deixei de ser pedra para ser vidraça, queria ver como se dava todo o processo. O que aprendi foi que não há mistérios, é possível atender a essas crianças. O preconceito está no adulto", pontua.
A história de Maria é uma entre tantas mães de crianças com necessidades educacionais especiais que, até hoje, batalham para oferecer um estudo de qualidade para seus filhos e a oportunidade de eles estudarem com outras crianças, o que – já está comprovado - ajuda na evolução desses casos.
Escola aceitou a matrícula de Ana Júlia, mas recusou a de João Victor ao saber que ele era autista (arquivo pessoal)
Edinéa Albini sentiu com mais clareza essa discriminação. Mãe de gêmeos de cinco anos, ela tentou matricular João Victor, que possui necessidades educacionais especiais, e Ana Júlia na mesma escola, uma instituição de ponta, que ela chamou como "sonho de consumo" para a educação de seus filhos.
"Eles me atenderam super bem, mas quando contei das condições do João Victor, disseram que eles não tinham autorização para aceitar uma criança especial. A atendente chegou a dizer que a média lá era sete e que meu filho nunca ia conseguir alcançar isso. Ela falou tudo isso sem nem conhecer e olhar para o meu filho", lembra.
Edinéa ainda foi convidada para conhecer a escola se sua intenção fosse matricular a Ana Júlia. "Falaram que ela seria muito bem aceita", acrescenta. A mãe, então, entrou com processo contra a escola. Um inquérito policial foi aberto e ela já teve sua primeira audiência com o diretor da instituição.
Enzo chegou a ser elogiado por uma professora, mas a escola afirmou que ele "atrapalhava o andamento das aulas" (arquivo pessoal)
Quando não esbarram na recusa, algumas mães enfrentam problemas mesmo após conseguirem matricular os filhos. Foi o que aconteceu com a jornalista Sabrina Brognoli d’Aquino. Ela conseguiu matricular o Enzo, de oito anos, na rede privada. Com a virada do ano letivo e a mudança professores, os problemas começaram.
Em junho de 2011, ela chegou a receber um bilhete da escola onde se lia que seu filho atrapalhava o andamento das aulas. "Isso não procedia porque a professora anterior do Enzo sempre dizia que ele era avançado para a turma dele e que os coleguinhas aprendiam com ele. Ela mesmo que relatou que chegou a mudar seu método de ensino e torná-lo mais interessante por causa do meu filho", conta.
Depois desse episódio, Sabrina flagrou vários momentos de descaso com seu filho. O cúmulo foi quando descobriu, através de uma auxiliar que a escola a fez contratar para Enzo, que seu filho era forçado a comer quando não queria. "Notei algumas manchas no corpo dele que os professores diziam que era porque ele caia na quadra. Depois disso o tirei da escola, registrei um B.O., fiz exame de delito e denunciei a escola no Conselho Municipal de Educação. Como resposta, disseram que, como meu filho não estudava mais lá, não tinha como avaliar o modo com o qual ele era tratado. O processo, muito provavelmente, será arquivado", lamenta.
Sabrina conseguiu matricular Enzo em outra instituição da rede privada que, segundo ela, soube trabalhar não com suas fraquezas, mas com suas qualidades. Escolas assim, no entanto, sofrem com a alta demanda de matrículas. Para melhorar a distribuição de alunos, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, sancionado em julho por Dilma Rousseff, sugere nos artigos 28 e 30 que escolas da rede privada aceitem e se adequem à educação para crianças com necessidades especiais.
Estatuto da Pessoa com Deficiência
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) está com um pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal para revogar esses artigos que, para a defesa, “ferem o principio dos direitos humanos". "Um dispositivo que impõe a inclusão ignora toda a preparação que a escola precisa ter para oferecer cuidado, atendimento e tratamento especiais necessários. Existem mais de quatro mil necessidades especiais, como você vai conseguir prever um projeto pedagógico sem saber quem baterá a sua porta?", diz Ricardo Furtado, advogado da confederação.
Não é o que pensam as mães desses alunos; para elas, o estatuto é um anúncio de novos tempos. "É um ganho da sociedade civil em relação às diferenças. Acho que a primeira geração pode pagar o pato com escolas que não se preparam e vão passar a aceitar crianças especiais. Mas, sem isso, essas escolas vão se preparar quando? Chega dessa desculpa de falta de preparo, isso é preguiça. A melhor professora do Enzo não tinha curso nenhum, o que ela tinha era vontade de ensinar, ela abraçou o desafio de ganhar o meu filho e isso foi muito positivo para ele", observa Sabrina.
Para o vice-presidente da Ampid (Associação Nacional do Ministério Publico de Defesa dos Direitos do Idoso e das Pessoas com Deficiência), negar a matrícula de um deficiente é, em sua visão, uma discriminação. "A maior parte das pessoas com deficiência está matriculada em escolas públicas. A impressão que fica é que as escolas privadas só existem para pessoas perfeitas. Com o tempo, vão segregar também aqueles alunos que têm dificuldade no aprendizado", pontua Waldir Macieira.
O principal ponto de discórdia se concentra, claro, nos gastos adicionais que as escolas particulares terão que arcar para se adequar às novas exigências do estatuto. Algumas instituições alegam que não conseguem cobrir tais despesas e que, portanto, a saída seria aumentar a mensalidade de todos os alunos para saldar custos extras. "Esse cenário vai resultar no fechamento de escola por não ter cliente com capacidade de pagar aquilo que o estado está obrigando”, alega Furtado.
Esses gastos, acrescenta o advogado, são de dever do Estado, o que está explícito no artigo 208, inciso III, da Constituição Federal, que diz que "o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino."
Do outro lado, o vice-presidente da Ampid afirma que, ao aceitar concessões do Estado para funcionarem, as escolas particulares acolhem, ainda, os deveres do mesmo. "Ninguém está pedindo uma tarefa extra pedagógica. Atender a alunos com deficiência está embutido no princípio de que a educação é para todos”, rebate.
(Karen Lemos - Portal da Band)