segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Sanções, boicotes e isolamento: até onde pode chegar a crise na Amazônia?

 
Foto: Fernando Alves/Governo de Tocantins

Nas últimas duas semanas o Brasil foi assunto frequente no noticiário internacional – e não por um bom motivo. O aumento do desmatamento e dos focos de incêndio na região da Amazônia afetou a imagem do País que, desde a década de 1990, tenta atuar como um protagonista na área ambiental. Naqueles anos, o Brasil sediava a Eco-92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento) e dava início a algumas políticas de combate ao desmatamento.

A mudança de comportamento, marcada nos discursos do presidente Jair Bolsonaro (PSL) - que coloca a questão ambiental como secundária em seu governo, não passa despercebida pela comunidade internacional, principalmente por países que têm com o Brasil parcerias comerciais regidas por um conjunto de exigências, inclusive ambientais. O mundo passa a acompanhar, então, os desdobramentos do que está acontecendo na Amazônia através de fotografias impressionantes que mostram a força e o alcance do fogo e da postura pouco diplomática do Governo Federal diante da magnitude do problema.

No ápice da crise, o presidente Jair Bolsonaro criticou países como a Alemanha e a Noruega, que suspenderam repasses de recursos para o Fundo Amazônia (financiamento de ações de proteção à floresta), sob o argumento de que o Brasil não estava cumprindo o acordo de preservação, e entrou em uma sequência sem fim de troca de farpas com o presidente da França, Emmanuel Macron; tudo isso na semana de reunião do G-7, o grupo de países mais ricos do mundo.

A Amazônia foi um dos temas do encontro e, nos bastidores, começaram a aparecer algumas palavras que acendem uma luz vermelha para o Brasil. O jornal belga Euobserver falou em “sanções”; a Finlândia cogita um “boicote” da carne brasileira, o que afetaria um dos setores mais fortes da economia do País: o agronegócio. Além disso, especialistas da área chamam atenção para um possível isolamento do Brasil em âmbito internacional devido os recentes eventos na Amazônia. Mas, afinal, alguma dessas consequências amargas poderia mesmo ocorrer?

“A imagem do Brasil está muito prejudicada. Estamos assistindo a uma perda da construção de muitos anos de uma imagem de um país ligado à questão ambiental no cenário internacional. As queimadas, os discursos do Bolsonaro de não valorizar a proteção ao meio ambiente e de colocar a culpa em ONGs é nocivo para nós”, avalia Marcelo Passini Mariano, professor da Unesp e do programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, em entrevista ao Portal da Band.

Mariano elenca ainda uma série de ações do atual governo que contribuiu para essa crise. “A área que mais tem sofrido é a do meio ambiente. Gradualmente foi sendo minada com a extinção de conselhos, flexibilização da fiscalização, brigas com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a nomeação de Ricardo Salles como ministro da pasta justamente para cumprir uma agenda antiambiental”, acrescenta.

Ricardo Salles, atual ministro do Meio Ambiente (Foto: Lula Marques)

As primeiras informações que antecederam a crise na Amazônia começaram no mês de junho, quando o Inpe divulgou que o desmatamento na região cresceu mais de 88%. O governo negou os dados e passou a criticar o órgão. O impasse chegou a tal ponto que o diretor do instituto, Ricardo Galvão, foi exonerado do cargo que ocupava desde 1970.
Já as queimadas, uma das etapas do desmatamento ilegal, tiveram pico em agosto, mês de temporada seca na Amazônia. Ainda assim, os números assustaram, ultrapassando a média do mês dos últimos 21 anos. O Programa Queimadas, do Inpe, chegou a registrar mais de 43 mil focos de incêndio somente nesse período.

O ponto de inflexão ocorre em 19 de agosto, dia em que o céu de São Paulo escureceu e a água da chuva mudou de cor. Neste momento, a existência das queimadas na Amazônia torna-se irrefutável. Pouco tempo depois, o Ministério Público Federal (MPF) abriu uma investigação a partir de denúncias do que vem sendo chamado de “dia do fogo”. Segundo o órgão, fazendeiros da BR-163 se reuniram em 10 de agosto para incendiar áreas da floresta. Essa ação criminosa orquestrada pode ser vista de longe, com imagens de satélites capturadas pela Nasa mostrando fumaça escura na região.

NASA/NOAA/Divulgação

Essas fotos passaram a rodar o mundo e tornaram-se manchetes dos principais veículos de comunicação, além de um assunto recorrentes nas redes sociais, com participação de artistas, como Leonardo DiCaprio e Madonna, cobrando soluções.


Sanções

Junto com essa repercussão, vieram reações das mais diversas, inclusive preocupantes, como a discussão levantada pelo Euobserver sugerindo a imposição de sanções econômicas - que restringem as relações comerciais - ao Brasil. A publicação argumentou no artigo que o País responde por apenas 1,7% do comércio da União Europeia em 2017. “A UE poderia absorver quaisquer efeitos negativos das sanções diversificando seu comércio com outros parceiros da América do Sul e de outras partes do mundo", escreveu o jornal.

Fernanda Mello Sant'Anna, professora de Relações Internacionais e Meio Ambiente da Unesp, já estudou casos em que barreiras comerciais foram aplicadas com base no argumento ambiental. “Temos registros de sanções que foram impostas por causa de pesca ilegal e de morte de golfinhos”, exemplifica em conversa com a reportagem. A especialista ressalta, porém, que tal medida é extrema e seu processo é complexo.

“As sanções são o último recurso de pressão sobre países. O país que resolve colocar uma sanção tem que estar preparado para arcar com custos, porque o Brasil pode entrar com processo no Órgão de Solução de Controvérsias [conselho da Organização Mundial do Comércio] para reverter isso, daí gera uma demanda de gasto de energia e recursos para se defender nesse órgão.”

Boicotes

Algo mais simples de acontecer são os boicotes na compra de produtos brasileiros. Aliás, isso já está acontecendo. Na terça-feira, 17, dezoito marcas de roupas e calçados internacionais, como Timberland, Kipling, Vans e The North Face, suspenderam a compra de couro brasileiro por causa da crise na Amazônia. “Estamos falando de um setor [produção de couro] que o Brasil é desenvolvido e competitivo. O boicote dessas marcas tão importantes só reforça que estamos vivendo um cenário muito negativo”, completa Marcelo Passini Mariano.

Na semana anterior do anúncio desse boicote, a Finlândia havia ameaçado parar de comprar carne produzida no Brasil.  “Qualquer ameaça implica uma tendência, uma possibilidade de um boicote realmente acontecer. Isso para o Brasil, e para o próprio governo Bolsonaro, é péssimo. O setor mais dinâmico da nossa economia é o agronegócio, que pode ser facilmente taxado e perder mercado”, acrescentou.

Isolamento

Essas ameaças são ainda mais preocupantes por atingir países importantes do ponto de vista econômico e do comercio exterior. A Finlândia que citamos acima, e a França, com quem Bolsonaro tem entrado em conflito, são países membros da União Europeia, segundo maior parceiro comercial do agronegócio, e que concentra 19,70% das importações.

“O mercado europeu não pode ser desprezado. É um mercado maduro que está atento às exigências ambientais, de saúde e trabalhistas da área. O Brasil tem que avançar nessas condições, caso contrário, vão deixar de comprar de nós. O comércio internacional é um palco onde interesses conflituosos estão constantemente disputando espaço”, resume Anapaula Iacovino Davila, professora de Ciências Econômicas e Relações Internacionais da FAAP, para o Portal da Band.

A especialista explica ainda que muitos países que exportam produtos que o Brasil também vende, e que, portanto, são nossos concorrentes no mercado internacional, estão de olho na imagem do País para tentar pegar esse espaço. Além disso, com o nome fragilizado na praça, o Brasil pode ter que vender mais barato para tentar manter um importador com ofertas melhores na manga. Essa equação pode gerar uma perda significativa de receita na balança comercial brasileira.


“O Brasil é um player importantíssimo, principalmente no agronegócio. Nós temos interesse em manter boas relações com outros países porque existe muita competição e concorrência por aí. Além disso, é muito difícil conquistar mercado, ganhar confiança, criar uma parceria e mantê-la. Agora perder tudo isso é fácil e rápido. E mais difícil do que conquistar é reconquistar. Quando uma relação dessas termina é porque alguém pisou na bola. Para reconquistar você pressupõe novos diálogos já carregados de mágoas”, pontua Anapaula.

Algo que poderia abalar as relações, por exemplo, com a União Europeia é justamente a questão ambiental. O professor Marcelo Passini Mariano reforça que o bloco está, mais do que nunca, ligado a esta matéria. “É uma questão de importância para a UE porque eles sentem muito os efeitos do aquecimento global, como o calor extremo.”

Mariano chama atenção também para impactos em acordos com o Brasil. “Essa crise pode atrapalhar, inclusive, uma das grandes ‘vitórias’ do governo nas relações internacionais, que é o acordo entre Mercosul e União Europeia”.

O especialista ainda faz um alerta para um possível isolamento do Brasil na área internacional. Hoje, o governo trabalha para manter forte a aproximação com os Estados Unidos, para quem o Brasil já pediu ajuda para combater as chamas na Amazônia. O especialista lembra, porém, que em 2020 acontecem as eleições no país, com risco de Donald Trump perder o cargo.

“O governo brasileiro joga muito arriscado com os Estados Unidos assim como jogou com a Argentina. Trump encontra-se fragilizado por causa da guerra comercial com a China, inclusive dentro de setores que antes o apoiavam. Em uma troca de presidente nos EUA, o que não é improvável, Bolsonaro ficaria isolado.”

“Tiro no pé”

Essa junção de crise na maior floresta tropical do mundo, desprezo com a importância da área ambiental e as frequentes rusgas com líderes de países poderosos é um “tiro no pé” do Brasil segundo os especialistas consultados pela reportagem, ainda mais quando falamos de agronegócio, setor que representa mais de 20% do PIB brasileiro.

“A ameaça de sanções, os embargos que já estamos sofrendo, a falta de política ambiental e até uma possível escassez de água por causa das queimadas podem gerar esse ‘tiro no pé’ no próprio governo, que tem o agronegócio como um de seus apoios”, reforça a professora Fernanda Mello Sant'Anna.

Diante de tamanha pressão, o governo dá pequenos sinais de reação. Na quinta-feira, 29, o governo publicou um decreto no Diário Oficial da União proibindo, por 60 dias, a permissão para queimadas em todo o território nacional. No mesmo dia, dados do IBGE apontavam uma queda de 0,4% no setor do agronegócio na comparação com os três primeiros meses de 2019; ainda que essa redução já fosse esperada devido às condições climáticas da época, para os especialistas da área, o preço dessa conta deve ser cara, e nós já começamos a pagá-la.

(Karen Lemos - Portal da Band)