sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Decisão sobre ensino religioso ignora realidade do Brasil, dizem especialistas

Uma cruz cristã é vista no plenário do STF à direita; no centro, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que escolas públicas podem ministrar aulas de ensino religioso confessional – aquele que permite que os professores promovam as crenças de uma religião sem precisar citar outras ou mesmo nenhuma, como é o caso do ateísmo ou do agnosticismo.

Por seis votos contra cinco, a Suprema Corte rejeitou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade da Procuradoria-Geral da República (PGR) que pedia, com base na laicidade do Estado, a oferta do ensino religioso não confessional – que abrange diversas crenças, sem priorizar uma especificamente – na rede pública de ensino.

Sob o argumento de que o Judiciário não pode interferir nas questões religiosas pessoais, incluindo a esfera pública, o STF deu aval para que Estados e Municípios decidam se o conteúdo a ser dado será confessional ou não confessional. A oferta dessa aula é obrigatória, mas serão facultativas, ou seja, o aluno pode não participar sem que isso gere um prejuízo em seu currículo escolar.

A decisão da Corte gerou uma repercussão enorme entre educadores e representantes das mais variadas religiões. Os especialistas estão preocupados, principalmente com o aumento da intolerância contra crenças minoritárias e também com o que será feito com o aluno que desejar não participar das aulas de ensino religioso baseada em uma única crença.

Segundo o levantamento da Prova Brasil, questionário aplicado pelo Ministério da Educação para estudantes e professores da rede pública, 55% dos docentes apontam que não há outra atividade prevista para os alunos que optam por não participar das aulas de religião.

Para Sérgio Junqueira, integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Religião, o aluno pode ter problemas sociais ou sentir-se excluído por não participar das mesmas atividades que seus colegas. Além disso, o especialista também aponta questões delicadas na contratação de professores ou representantes religiosos que irão aplicar este conteúdo.

“O Estado não vai pagar um professor para ensinar religião; não há dinheiro para isso”, aponta o especialista, que também destaca o problema da formação específica. O mais recente levantamento sobre o assunto mostrou que menos da metade dos docentes do ensino fundamental tem licenciatura nas disciplinas que lecionam.

“É preciso, então, fazer alianças com lideranças religiosas, mas não são todas que poderão arcar com isso. Temos que considerar também que um líder religioso não necessariamente é um bom professor. Pensar como aplicar um conteúdo não é tão simples assim; sem um cuidado com a informação que está sendo passada, podemos esbarrar no preconceito”, alerta.

Intolerância religiosa

Professor e antropólogo da Universidade de São Paulo (USP), Vagner Gonçalves da Silva estuda a etnografia das populações afro-brasileiras e, durante duas décadas, fez um monitoramento do aumento dos casos de intolerância contra religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé.

Vagner acredita que com a decisão do STF, ataques do tipo serão ainda mais frequentes. Para ele, a Suprema Corte ignorou a realidade do Brasil. “[Na virada dos séculos 19 e 20] as religiões de matriz africana eram criminalizadas no Brasil; tinha, inclusive, invasão de polícia nos terreiros, e pais de santo enquadrados”, lembra.

“Somente em meados do século 20, essas religiões conseguiram ‘respirar’ no momento em que a classe artística aderiu à crença e o movimento negro se fortaleceu. É uma conquista recente, então é preciso ter cuidado com isso. O que o Estado deveria fazer agora é garantir a liberdade de culto, prevista na Constituição, e impedir que um grupo religioso vilipendie os símbolos sagrados de outros.”

O antropólogo menciona ataques recentes como à menina Kayllane Campos, 11 anos, atingida na testa por uma pedra em 2015 ao sair de um culto de candomblé; a invasão a um terreiro em Jundiaí, no interior de São Paulo, na qual criminosos quebraram imagens sagradas e colocaram fogo no local dois dias antes de sair a decisão do STF; e a ação na qual traficantes de drogas, que se dizem evangélicos, obrigaram uma mãe de santo a destruir seu terreiro sob a mira de armas no mês passado.



Para o especialista, a laicidade do Estado não é respeitada, e o julgamento do STF é uma prova disso. Também partilha da mesma opinião Daniel Sottomaior, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que estão entre os 8% da população que se dizem "sem religião", segundo o Censo 2010.

“[O desrespeito à laicidade] é representado com a quantidade de símbolos religiosos em repartições pública, incluindo o STF, e muitas pessoas não percebem isso”, exemplifica Daniel, que já acionou o Ministério Público para que as imagens fossem retiradas. “O fato de essas imagens passarem despercebidas é sintomática, mostra que o domínio de uma única religião já está naturalizado no país, e isso vai contra o Estado laico.”

Assim como o antropólogo Vagner, Daniel também teme um aumento do preconceito contra ateus e agnósticos, que, segundo ele, já atinge níveis preocupantes. “A Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa perguntando às pessoas o que elas pensam sobre grupos específicos. Esse levantamento mostrou que 39% dos entrevistados rejeitam pessoas que não acreditam em Deus [este índice chega a 51% na região Norte do Brasil]. Nós também recebemos muitos relatos de pessoas que foram expulsas de casa, perderam emprego ou terminaram relacionamentos só pelo fato de não terem uma religião.”

Católicos e evangélicos

Os especialistas entrevistados acreditam que o ensino religioso irá privilegiar a crença católica ou evangélica. Segundo o Censo 2010 - última pesquisa feita pelo IBGE acerca da questão, os católicos ainda são a maioria no Brasil, ainda que este índice tenha caído de 73,6% para 64,6% em dez anos, e os evangélicos cresceram de 15,4% para 22,2% neste mesmo período.




Nesta semana, a prefeitura de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, já notificou que irá incluir a reza cristã do Pai Nosso nas escolas do município. Os alunos que não quiserem participar da oração precisam apresentar uma declaração assinada pelos responsáveis.

Presidente da Comissão para Cultura e Educação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom João Justino defende um diálogo entre moradores dos municípios, professores e estudantes para que se chegue a uma conclusão sobre qual crença será ministrada nas escolas e seu conteúdo.

O arcebispo ainda defende um ensino religioso plural que respeite as demais. “Nós vemos [a decisão do STF] como uma oportunidade de falar sobre intolerância religiosa nas escolas e trabalhar a importância do respeito com as outras tradições religiosas.”

Dom Justino ressalta que a Suprema Corte atuou de acordo com a Constituição, que estabelece aulas de religião na rede de ensino pública. “Algumas pessoas não entenderam e estão achando que a Igreja Católica está exigindo um ensino católico; o que queremos, na verdade, é que o ensino seja de acordo com a demanda dos estudantes, permitindo que aqueles que já fizeram uma opção religiosa, geralmente ligada ao histórico familiar, tenham chances de aprofundar esse conhecimento. Para nós, a apresentação histórica das muitas expressões religiosas poderá ser feita no conteúdo de outras matérias.”

Sérgio Junqueira, do Grupo de Pesquisa Educação e Religião, concorda que outras matérias vão abordar, de forma antropológica, a importância e a influência da religião no mundo, mas ele aposta em modelos que garantiriam melhor essa pluralidade de ensino. “Temos um projeto em Curitiba que chama Trilhas do Sagrado. Nele, as crianças da rede municipal de ensino têm a oportunidades de visitar templos budistas, terreiros de umbanda, igrejas cristãs, mesquitas islâmicas, entre outros.”

“Ensinar as crenças de uma religião cabe à família; à escola fica o papel de ajudar o estudante a entender a estrutura e as manifestações religiosas a fim de desmontar preconceitos”, conclui.

(Karen Lemos - Portal da Band)