Kim Jong-un observa o lançamento de um míssil em foto deste ano (KCNA)
Em meio a uma ameaça de guerra nuclear entre Estados Unidos e Coreia do Norte, é grande o interesse pelo misterioso país asiático, comandado pelo ditador Kim Jong-un, que insiste em manter as suas portas fechadas.
A história do país, um território estratégico disputado por várias potências como Japão, China, Rússia e Estados Unidos, é envolto de enigmas, relatos de violação de direitos humanos básicos, tensão e muitos boatos.
É difícil saber o que é verdade e o que é exagero por lá. Ainda assim, separamos alguns fatos curiosos, outros assustadores, divulgados por organizações que estudam o país, pela imprensa estatal local e pelos desertores – as testemunhas mais confiáveis de uma nação que permanece isolada em um mundo cada vez mais globalizado.
Sequestro ousado
Imaginem que o Brasil, querendo um nome de peso para a seleção de futebol, decide arquitetar um plano secreto para sequestrar o jogador Lionel Messi, da Argentina. Parece absurdo, mas algo desta magnitude realmente aconteceu na Coreia do Norte durante a década de 60. Fanático por cinema, o então líder Kim Jong-il quis melhorar a produção de filmes do país, que era lastimável na ocasião. Com profissionais sem muito conhecimento na área e pouca remuneração, a saída elaborada por Jong-il foi “importar” mão de obra de qualidade através de um engenhoso sequestro.
Os escolhidos foram o cineasta Shin Sang-ok e a atriz Choi Eun-hee, que quando casados formaram o casal um celebridades famoso e amado na vizinha Coreia do Sul. A primeira a ser atraída para a emboscada foi Choi. Encantada com uma proposta de trabalho, ela viajou a Hong Kong, onde foi surpreendida por homens do regime de Jong-il. Eles a sedaram e a colocaram em um barco rumo à Coreia do Norte. Shin fez o mesmo trajeto, em busca da ex-mulher, e teve o mesmo destino.
Os dois ficaram confinados em mansões-cativeiro, obrigados a estudar a filosofia do país e, mais tarde, trabalhar na criação de filmes para Kim Jong-il. O casal se manteve obediente às ordens rígidas do ditador para ganhar sua confiança. Com o tempo, começaram a filmar em outros países comunistas e, depois, conseguiram convencer o líder a construir um estúdio de cinema em Viena, na Áustria. Lá, elaboraram um plano de fuga e pediram refúgio à embaixada dos Estados Unidos. A história surpreendente de Shin e Choi é contada no livro Uma Produção Kim Jong-il, de Paul Ficher, e no documentário Os Amantes e o Déspota, de Ross Adam e Robert Cannan.
Kim Jong-il, Choi Eun-hee e Shin Sang-ok Kim Jong-il, Choi Eun-hee e Shin Sang-ok (IMDB)
Godzilla norte-coreano
Uma das produções notórias que o cineasta sequestrado Shin Sang-ok realizou na Coreia do Norte foi Pulgasari, o Comedor de Ferro, de 1985. Um ano antes, o mundo capitalista se rendeu ao sucesso de O Retorno de Godzilla, filme sobre o famoso lagarto gigante que aterroriza o Japão. Mesmo vivendo em um país isolado, Kim Jong-il tinha lá seus privilégios. Cinéfilo de carteirinha, ele chegou a montar uma rede de contrabando para assistir a filmes “proibidos” em seu país. É muito provável que ele tenha assistido à série Godzilla e ficado encantado.
Foi assim que surgiu a ideia de um Godzilla norte-coreano. A história de Pulgasari se passa em tempos medievais, em uma região oprimida por um governo ganancioso. O protagonista é preso por infringir as ordens desse governo e, na prisão, cria um monstrinho com o arroz de sua refeição. A criatura ganha vida quando é tocada pelo sangue de sua filha. Aliado dos camponeses, Pulgasari destrói o exército e acaba com o regime distópico.
Mesmo sendo um filme “trash”, a produção foi um sucesso na Coreia do Norte. Desertores juram que os boatos de pessoas que morreram nas enormes filas que tentavam assistir Pulgasari são verdadeiros. Fora do país, o filme se tornou um clássico cult. Confira o trailer:
Para quem ficou curioso, é possível assistir ao filme inteiro, com legendas em inglês, neste link.
A banda pop das militares de minissaia
Não é só de filme trash que vive a Coreia do Norte. Na busca por um “ar mais moderno”, o país criou a sua própria banda pop. Formado por 20 musicistas talentosas, que cantam e tocam vários instrumentos, o grupo Moranbong é um sucesso na pátria mais isolada do mundo.
Não espere um repertório com músicas de Madonna, Beyoncé ou Lady Gaga. A banda Moranbong se apresenta apenas com canções que fazem reverência aos líderes norte-coreanos e as tradições e cultura do país. Ainda assim, o ritmo empolga, indo do rock ao pop e até à música eletrônica.
Os shows do grupo são uma atração à parte. A começar pelo figurino das artistas, que normalmente usam roupas militares, mas sempre com minissaias e cortes de cabelo moderno para atrair um público majoritariamente masculino. O próprio atual líder do país, Kim Jong-un, costuma a marcar presença em eventos com a banda.
Já no telão que é sempre montado no palco, são exibidas imagens de treinamentos militares e lançamento de foguetes – uma paixão nacional. Os líderes da Coreia do Norte também aparecem no telão, para o delírio da plateia, que sempre fica de pé e aplaude com um entusiasmo que beira o exagero.
Grande show de ginástica e arte
No grande teatro que se tornou a Coreia do Norte, chama atenção outro evento magistral que acaba atraindo turistas para o país. O Festival das Grandes Massas e Performances Artísticas e Ginásticas Arirang, também conhecido como Festival Arirang, é uma grande festa anual que acontece no principal estádio da capital Pyongyang entre os meses de agosto e setembro.
A ideia do festival foi inspirada na canção que batiza o evento, Arirang. A música, tradicional da cultura coreana, conta a história de um casal que é separado por uma figura maquiavélica - para alguns, a canção simboliza a divisão da Coreia, ocorrida após a guerra de 1950. Há também, claro, muitas referências à dinastia Kim e a força militar norte-coreana.
O show consiste em performances e danças, com coreografias muito bem ensaiadas e impressionantes para um estádio lotado que acompanha anualmente a atração. O evento é levado extremamente a sério pelos artistas, dançarinos e ginastas que participam do festival. Selecionados a partir dos cinco anos de idade, eles treinam por meses, e muitos passam a vida toda se dedicando às atrações desse show até se aposentarem.
Em 2007, os Jogos de Massa de Arirang foram reconhecidos pela Guinness World Records como o maior evento desse tipo. Veja alguns destaques:
Unicórnio de Kim Jong-un
Ser uma nação tão isolada tem lá o seu preço. Qualquer história - por mais absurda que seja - que ouvimos relacionada à Coreia do Norte hesitamos a duvidar, porque é impossível confirmar as informações de um país que proíbe agências internacionais em seu solo e censura a sua imprensa.
Mas, às vezes, a criatividade para mentiras é tão grande, que beira o cômico. Em 2012, para reafirmar a superioridade norte-coreana que os líderes do país gostam de pregar por aí, surgiu a “notícia” de que tocas de unicórnio – cavalos mitológicos com chifre na testa - foram encontradas pelo Instituto de História da Academia de Ciências Sociais da Coreia do Norte.
Na época, a história viralizou e veículos de mundo inteiro noticiaram a “descoberta” com muito bom humor. Mais tarde, descobriu-se que tudo não passou de um erro de tradução da própria Korean Central News Agency (KCNA), imprensa oficial do regime. No relatório em inglês, a agência confundiu o nome do animal. Na verdade, os norte-coreanos encontraram tocas de Qilin, criatura mitológica chinesa que tem corpo de cervo e cabeça de dragão; algo bem mais verossímil do que um unicórnio, não é mesmo?
Kim Jong-un aparece montado em um unicórnio em montagem da internet (Reprodução)
Presidente morto e filhos superpoderosos
Na Coreia do Norte, os membros da dinastia Kim são tão queridos que praticamente são tratados como verdadeiras divindades no país. Prova desse amor todo chocou o mundo em 1994, ano em que o fundador do regime, Kim Il-sung, morreu. Na época, imagens do velório rodaram o mundo e chamaram atenção devido a enorme quantidade de norte-coreano nas ruas chorando desesperadamente (e de forma bem exagerada) a perda do líder.
Por causa dessa admiração toda, mesmo após sua morte, a Constituição do país o manteve no Executivo com o cargo de “Presidente Eterno da Coreia do Norte”. Seu corpo permanece conservado no Palácio do Sol de Kumsusan e é muito visitado por norte-coreanos e turistas.
Seu filho e sucessor, Kim Jong-il (o apaixonado por cinema que bolou aquele sequestro bem ousado) morreu em 2011 e a comoção nas ruas de Pyongyang foi ainda mais surpreendente porque nevava forte no dia do velório.
Toda a dinastia é dotada de superpoderes para justificar tamanho culto aos líderes. Jong-il, por exemplo, já andava e falava com poucos meses de vida. Aos três anos, ele evocou um furacão no inimigo Japão só de borrar a ilha em um mapa-múndi com tinta preta (!). Além disso, ele ainda teve tempo e agilidade para escrever seis óperas em dois anos e para publicar 1,5 mil livros durante os três anos em que cursou o ensino superior. E você aí reclamando do TCC, hein?
Já o atual ditador do país, Kim Jong-un, também tem dotes de invejar. Dizem os livros escolares da Coreia do Norte, que ensinam sobre a vida de seus líderes, que Jong-un já dirigia com três anos de idade e, aos nove, ganhou uma corrida de iate. Como se isso não bastasse, ele também é um artista e compositor musical super talentoso. Com tantas virtudes, não é a toa que os norte-coreanos enfrentam até as águas geladas para tentar chegar perto dele:
O calendário cujo ano é 106
A idolatria pela dinastia Kim é tão excepcional que os norte-coreanos adotaram um calendário próprio que tem início com o nascimento do fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung.
O anuário começou a ser implantado em 1997 no dia em que se celebra a independência do país. A partir deste dia, os veículos de comunicação, a rede de transporte público e até os cartórios, nos documentos oficiais, passaram a utilizar esse sistema.
Aqui no Brasil, e em muitos outros países do mundo, estamos em 2017 segundo o calendário que usamos, o gregoriano. Para os norte-coreanos, no entanto, o ano é 106. Esta foto de um calendário da Coreia do Norte mostra o ano 99 em destaque, equivalente ao ano de 2010, que também é marcado na folha para que os norte-coreanos não fiquem tão perdidos no tempo.
Wikimedia Commons
Censura e imprensa controlada
Muitas das histórias absurdas da Coreia do Norte nem teriam começado se houvesse liberdade de imprensa no país. Desertores contam que há apenas um canal de notícias por lá e, por razões óbvias, é totalmente controlado pelo Estado.
Um desses noticiários tornou famosa internacionalmente uma âncora de TV por causa da forma empolgada que ela falava sobre os líderes e as conquistas militares do país. Ri Chun-hee, que já está aposentada, até chorou ao vivo quando anunciou a morte de Kim Jong-il. Confira:
A censura é tanta que até atravessa fronteiras chegando ao inimigo mais odiado dos norte-coreanos: os Estados Unidos. Você se lembra das ameaças feitas pelo regime de Jong-un nas vésperas do lançamento do filme A Entrevista? A produção hollywoodiana conta a história de um plano da CIA para assassinar o ditador norte-coreano com a ajuda de um jornalista de celebridades que viaja até o país para entrevistá-lo. Apesar de ser uma sátira, o filme irritou tanto que a distribuidora Sony Pictures sofreu um ataque cibernético. Também houve ameaças de atentado, fazendo com que a pré-estreia em Nova York fosse cancelada.
Para quem ficou curioso, aqui está o trailer do filme:
Campos de trabalho forçado e execuções
Aliado à censura para sustentar a engrenagem ditatorial que é a Coreia do Norte, o governo mantém – embora sempre negue – campos de trabalho forçado em várias partes de seu território. Ali, muitos prisioneiros morrem de tanto trabalhar, de fome, de frio ou são executados por algum motivo por vezes supérfluo.
Grupos de direitos humanos estimam que existam seis campos de concentração, sendo que o maior deles tem uma área do tamanho da cidade de Los Angeles, com cerca de 200 mil prisioneiros. A negação do regime é confrontada com imagens do Google Earth que mostram esses campos segundo as coordenadas de desertores.
Imagens do Google Earth mostram campos de trabalho forçado no país (Anistia Internacional)
Pelas leis norte-coreanas, alguns crimes, como traição à pátria, são atribuídos a três gerações. Há casos em que filhos e netos também são presos ou mesmo nascem dentro de um campo de concentração. Foi o que aconteceu com Shin Dong-hyuk, um dos desertores mais famosos que conseguiu o feito raro de escapar de um campo com segurança rígida.
Shin carrega um pouco de sua história triste, contada no livro Fuga do Campo 14, de Blaine Harden, no corpo. Ele tem cicatrizes nas costas e nas nádegas e marcas de um gancho usado para suspendê-lo por cima de chamas em uma sessão de tortura. Ele também não tem parte do dedo média de sua mão direita, cortada por um dos guardas do campo após ter derrubado uma máquina de costura.
Turismo na Coreia do Norte (sim, é possível)
Existem alguns pacotes turísticos para a Coreia do Norte. Mas, após tudo que vimos até aqui, fica claro que não é uma viagem como qualquer outra. Para começar, você não tem liberdade para sair mochilando pelo país. Tudo é controlado pelo Estado, desde o momento que você desembarca no aeroporto de Pyongyang até o instante em que você deixa o solo norte-coreano.
A empresa estatal norte-coreana Ryohaengsa realiza passeios pela capital. Cada grupo de turista é acompanhado por guias do regime e os pontos turísticos são selecionados também por eles. As fotos que você tira com seu celular e câmera fotográfica são vistoriadas. Há hotéis específicos nos quais os estrangeiros podem se hospedar e em hipótese alguma lhe dão permissão para deixar o local sem um guia.
As estátuas de Kim Il-sung e Kim Jong-il é uma das atrações turísticas de Pyongyang (KCNA)
É bom ficar atento para não desrespeitar nenhuma regra que a agência de viagem e os guias impuserem. Vale lembrar o caso do norte-americano Otto Warmbier, que viajou ao país em 2016 e foi preso sob a acusação de roubar um cartaz de propaganda comunista. Warmbier recebeu uma pena de 15 anos de prisão, mas foi extraditado para os Estados Unidos este ano em estado de coma. Por razões desconhecidas, ele morreu no mês de junho.
(Karen Lemos - Portal da Band)