terça-feira, 27 de junho de 2017

Refugiados LGBTs sofrem com perseguição e preconceito até entre os seus conterrâneos

Lara Lopes chora ao lembrar dos preconceitos que enfrentou em seu país natal (Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas)

Quando Lara Lopes, de 33 anos, deixou Moçambique, na África, ela já estava em seu limite. Lésbica, Lara precisou buscar asilo em outro país por causa de sua orientação sexual. "A maioria dos países africanos olha a comunidade LGBT como pessoas doentes ou possuídas por algum espírito. Várias vezes ouvi isso e, durante parte da minha vida, achei que fosse verdade", desabafa.

Parte das 250 solicitações de refúgio que o Brasil processou baseadas em perseguição de gênero ou de orientação sexual, a moçambicana participou, nesta terça-feira (27) em São Paulo, do lançamento de uma cartilha de proteção a refugiados LGBT, criada pela agência da ONU para refugiados (ACNUR) e pelo alto comissariado para direitos humanos (ACNUDH). O material está disponível em quatro línguas: português, espanhol, inglês e francês.

"No meu país, eu era obrigada a construir uma família 'normal', que é a mulher casando com o homem, tendo filhos e agradando aos familiares", relata. "Chegou um tempo em que eu não aguentava mais. Eu não conseguia emprego por ser homossexual, eu estava estudando, mas na faculdade meus colegas e até professores me olhavam como se eu não fosse humana. Minha mãe me perguntava por que eu não queria mais sair de casa, como eu posso ir para rua se lá todos pensam que sou doente?"

Lara lembra ainda que teve uma grande amiga assassinada em Moçambique somente pelo fato de ela ser LGBT. "Você vê amigos e familiares serem violentados e mortos, mas não há nada que você possa fazer", lamenta já aos prantos.

"Não é que no Brasil não tenha homofobia, mas aqui pelo menos existem leis para nos proteger", acrescenta Lara, cuja natal Moçambique é vizinha de países como Malawi, Tanzânia, Zimbábue e Zâmbia, que aplicam penas severas, como prisão perpétua e até punição corporal aos homossexuais.

Discriminação durante o processo de asilo

Nem todos os solicitantes de refúgio sabem, no entanto, de seus direitos – e às vezes nem se aceitam como integrantes da comunidade LGBT. Foi para difundir essas informações – e também devido a um aumento dos pedidos de asilos relacionados à perseguição por orientação sexual – que a cartilha foi elaborada.

"Essa cartilha tem função dupla: garantir que os LGBTs conheçam seus direitos e saibam onde buscar apoio e também informar a sociedade brasileira sobre quem são essas pessoas e quais dificuldades enfrentam", pontua Diego Nardi, assistente de meios de vida do Acnur.

Diego ressalta que não é somente no país de origem que refugiados LGBTs sofrem; isso também ocorre ao longo do processo de solicitação de asilo. "Muitas vezes eles se deparam com funcionários que não estão preparados para atendê-los, e aplicam procedimentos abusivos – como pedir para que comprovem a orientação sexual – ou até nos centros de acolhidas, onde alguns conterrâneos podem também ser hostis."

"Vivemos com medo"

Foi o que aconteceu com Mahmoud Hassino, refugiado sírio homossexual que chegou a Alemanha em 2014 e precisou deixar às pressas um abrigo de imigrantes por ter sofrido preconceito de outros sírios. "Vivemos com medo de sermos identificados como gays, porque, dessa forma, viramos alvos de ataque", declarou em entrevista à Associated Press.

O país árabe é um dos 73 que criminalizam as relações homossexuais, inclusive com pena de morte. Após a conquista de territórios sírios pelo grupo terrorista Estado Islâmico, começou a circular na internet vídeos em que os extremistas impõem suas punições, que incluem jogar homossexuais do alto de prédios e convocar a população para apedrejá-los até a morte.

Reprodução

Para Diego Nardi, do Acnur, a cartilha também deve ajudar a facilitar a entrada desses LGBTs em países que oferecem asilo. "Uma pessoa que é obrigada a viver escondendo sua sexualidade, sua identidade de gênero, já significa que sofre perseguição e merece refúgio", explica. "Para ela, poder ir a um lugar onde é possível amar livremente e viver sem se esconder é uma conquista, uma verdade vitória."

(Karen Lemos - Portal da Band)

terça-feira, 20 de junho de 2017

'Tsunamis' de fogo consumiam tudo em segundos, diz testemunha de incêndio em Portugal

André com sua cachorra bulldog e um pastor belga de um amigo da aldeia (arquivo pessoal)

André Kuzer passou próximo da estrada que liga os municípios de Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera, em Portugal, minutos antes de ela ser engolida pelas chamas. No contexto da maior tragédia do país, o local recebeu o nome de "estrada da morte" depois que 47 corpos foram encontrados naquele trecho. Eram de pessoas que morreram carbonizadas enquanto tentavam escapar do enorme incêndio que teve início em Pedrógão Grande, no último sábado (16), e que, até o momento, deixou 64 mortos.

Filho de um brasileiro, o arquiteto português de 40 anos estava em sua residência de Mosteiro, aldeia a cerca de seis quilômetros da região onde o incêndio teve início. “De longe eu conseguia ver o fogo, mas parecia controlado”, relata ao Portal da Band.

Duas horas depois, lembra o português, tudo ficou na mais completa escuridão. “Avistei ‘tsunamis’ de fogo consumindo uma enorme encosta em segundos. Ventava muito e já era possível sentir um enorme calor nesse vento. Minha primeira reação foi pegar uma mangueira e regar a casa. Nunca tinha vivenciado algo assim, não sabia o que fazer ou como me proteger.”

Com medo de ficar em casa, André pegou o carro e foi até o centro da aldeia. “Lá eu vi dois bombeiros que haviam sido apanhados pelas chamas. Eles já estavam praticamente despidos e tinham queimaduras pelo corpo. Naquele momento eu pensei que, se ficasse ali, eu morreria. Foi quando eu ouvi alguém comentando da estrada, que estava transitável, e resolvi sair de lá.”

Quando chegou em Coimbra, onde mora a mãe, André soube dos corpos carbonizados encontrados no local onde há pouco havia passado perto. “Se eu tivesse esperado 10 minutos para sair da aldeia, eu também teria ficado preso nas chamas”, conta.

Drone sobrevoa a 'estrada da morte' após incêndio:




Cenário apocalíptico

Durante a viagem para Coimbra, Kuzer pensou em seus vizinhos e nas pessoas que conhecia que decidiram permanecer em Mosteiro. No trajeto, ele também se lembrou do que viu antes de conseguir escapar e da rapidez com a qual as chamas destruíram tudo. “O cenário era apocalíptico. Descrever aquilo é como descrever o inferno. O vento e o som das chamas são inenarráveis. Tudo aconteceu muito rápido, foi horrível.”

Com dificuldades para se informar – a comunicação na região atingida pelo incêndio ainda é complicada –, Kuzer começou a receber informações sobre várias mortes em sua aldeia. Ele também atendeu a muitas ligações de pessoas perguntando se ele estava vivo. “Aquilo me angustiou muito”, relata.

O fogo, que ainda se alastra por algumas vilas, já foi contido em Mosteiro. Nessa segunda-feira (19), o português conseguiu retornar para a aldeia e não soube de nenhum conhecido que tenha perdido a vida, embora ainda se tenha notícias de muitos desaparecidos.

“Uma vizinha minha foi uma das que desapareceram; fui até a casa dela, que foi totalmente consumida pelo fogo, mas não encontrei nada. O carro dela não está lá também. Não sei se ela conseguiu fugir ou se também foi pega pelas chamas na ‘estrada da morte’”, lamenta.

Mapa mostra a 'estrada da morte', a casa de André e o local onde o fogo teve início:



Sensação de abandono

Apesar de incêndios serem comum nessa época do ano em Portugal, nunca houve algo nessa proporção. Diante da magnitude dos fatos, o português diz ter se sentido desorientado e abandonado pelas autoridades do país.

“Tudo aconteceu tão rápido e de forma inesperada que ninguém conseguiu pensar em um plano de salvamento. Não havia ajuda, todos os residentes foram abandonados a própria sorte”, conta ele, que enquanto estava em Mosteiro não viu agentes civis para evacuar a área ou bombeiros para impedir que o fogo chegasse até a aldeia.

“Eu não sei se era possível imaginar que o fogo tomaria a dimensão que tomou, mas o sentimento que eu tenho é que erros foram cometidos para que a tragédia se tornasse tão gigante”, desabafa. “Ainda que as autoridades estivessem desprevenidas, confiamos que os órgãos de proteção civil estão lá justamente para antever esse tipo de situação. Espero que, após esse drama, as leis mudem no país para que se evitem tragédias como essa.”

No domingo (18), Portugal declarou luto oficial de três dias em meio à consternação nacional. Kuzer conta que é mesmo de luto o clima em todo o país. Mesmo tendo retornado para aldeia atingida pelo incêndio, o arquiteto decidiu não fazer fotos ou registros do que viu. “Prefiro não guardar nada disso na minha memória. Foi a pior situação que eu já passei na vida”, define.

(Karen Lemos - Portal da Band)