domingo, 21 de março de 2010

A distorção que vem do campo

Encontro entre grandes nomes da música brasileira celebra a inusitada mistura do ‘rock rural’















Quando o cantor e compositor Zé Rodrix (25/11/1947 - 22/05/2009) escreveu os versos de “Casa no Campo” em parceria com Tavito, talvez jamais tivesse imaginado que ali dava à luz uma vertente na música brasileira, uma mistura da distorção das guitarras com a harmonia da música regional, em uma fusão que ficou conhecida como rock rural.

O termo, que nasceu com as palavras de Rodrix nos trechos “Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa compor muitos rocks rurais”, batiza agora um encontro para manter viva essa miscelânea de sonoridades, que já faz parte das especificidades da nossa MPB.

Desde a célebre gravação de Elis Regina, na década de 70, o gênero é relembrado por aqueles que acompanharam de perto o nascimento da combinação musical, e vem atraindo muitos jovens, cada vez mais interessados no que artistas como Zé Geraldo, a dupla Sá e Guarabyra, e conjuntos como o Terço, têm para mostrar.

O Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, reuniu esses e outros grandes nomes da música brasileira em um encontro na programação da casa, que vai até o dia nove de março. Toda às terças-feiras, em dois horários - às 13h e às 19h30, o palco do CCBB se transforma em uma espécie de sala de reuniões para velhos amigos fazerem o que mais gostam: tocar, inventar, e experimentar a música.

“A ideia é mostrar para o público que a coisa continua sendo feita até hoje. Não se trata de algo nostálgico, e muito menos está estagnado”, explica o curador do evento Ricardo Vignini.

Por trás da empreitada, Vignini, que não por acaso também faz parte da seleção artística do evento - tocando com sua banda Matuto Moderno - acredita que o inusitado resultado trazido pelo rock rural continua vivo para aqueles que apreciam a boa música.

“Quando a gente fala da música do campo, todo mundo que nasceu no centro urbano é despertado por uma identificação. Todos nós temos um antepassado que veio lá do interior, e isso faz com que a música com ‘pé na roça’ seja valorizada até hoje”, define o curador.

Zé Helder, um dos novos nomes convidado para o evento e que dividiu o palco com o Ivan Vilela na última terça-feira (2), complementa a resposta de Ricardo.“Estamos nos referindo a músicos que, ao invés de olhar para as tendências momentâneas, estão procurando algo verdadeiro para expressar com sua música”.















Zé Geraldo, que se apresentou no palco do CCBB na última terça-feira (23), diz não enxergar o rock rural como um movimento – ou até como proposta musical. Para o músico, a mistura de gêneros ocorreu de forma natural, e que já era feita muito antes dos rótulos.

“Muitos artistas já realizavam essas misturas espontaneamente. Só para citar um exemplo, Raul Seixas já fazia isso com mestria, só que ninguém achou um título para isso”, explica o cantor e compositor, nascido em Rodeiro, interior de Minas Gerais.

Música sem preconceito

Sérgio Hinds é integrante do conjunto O Terço, que surgiu no final da década de 60 e abriu o festival no CCBB no dia seis de fevereiro, dando o ponta-pé inicial no encontro e esquentando o palco para uma reunião que, segundo ele, celebra um momento importante da cultura brasileira: época em que a experimentação musical era mais do que válida.

“Não tínhamos o menor preconceito, a gente misturava tudo: samba, baião, coisas nada a ver com o rock and roll; tínhamos total liberdade de criação”. Hinds conta ainda que, naquela época, até mesmo as gravadoras eram mais receptivas em relação à materiais inovadores. “Simplesmente editavam o disco e botavam na rua. Era uma época de experimentalismo, quando não existiam barreiras e ficávamos totalmente livres para criar”.

Flávio Venturini, do conjunto 14 bis e que periodicamente se reúne com Hinds, dividindo o som d’O Terço, compartilha da opinião do companheiro de palco:

“[O Terço] trazia muita informação nova numa época em que não havia globalização; neste ponto fomos inovadores trazendo essa mistura de mpb, pop e rock”.















Mesmo sendo irreverente, o músico crê que a mistura do rock rural esteja perdendo seu espaço dentro das mudanças na música brasileira, e atribui isso a um momento difícil na indústria fonográfica.

“Tenho achado esse momento um dos piores pelo qual nossa musica já passou”, resume. Em todo caso, Venturini faz questão de ressaltar que muita gente ainda tem ‘sede de ver boa música ao vivo’. “Mas isso é cada vez mais raro”, explica.

Música sem idade

Para Luís Carlos Sá, um dos principais representante do’movimento’ ao lado de Guttemberg Nery Guarabyra Filho - com quem forma a dupla “Sá e Guarabyra” - o rock rural não pretendia inovar a forma de se tocar rock no Brasil, mas sim de valorizar a canção tradicional e popular feita aqui muito antes dos ritmos americanos chegarem aos nossos ouvidos.

“O rock americano deu origem aqui a Jovem Guarda, que era essencialmente urbana e nada regionalista em termos de Brasil. Ao contrário do rock rural, que partiu da junção do ‘country rock branco’ de Neil Young, Bob Dylan e James Taylor com a raiz brasileira caipira de Cascatinha e Inhana e outros ritmos populares”, explica o cantor e compositor.

O grande encontro ficou encarregado não só de resgatar este pedaço na história da música brasileira, mas também de prestar uma merecida homenagem a um grande amigo e parceiro de palco de Sá: José Rodrigues Trindade - o Zé Rodrix, o mesmo que iniciou toda a história de rotular a música que toda essa gente fazia de rock rural foi relembrado na reunião musical.

Rodrix, que faleceu pouco menos de um ano, teve um papel cultural importante como músico, compositor e produtor musical. Participou de bandas como Sá, Rodrix & Guarabyra (deixando o trio em 1973) e Joelho de Porco. Também chegou a revelar novos talentos da época, tendo produzido nomes como os teatrais Secos&Molhados, também na década de 70.

Além do tributo, Luís Carlos Sá define a união de artistas do rock rural em um mesmo espaço como um painel inédito do gênero. Inédito - mesmo depois de tantos anos de sua classificação - isso porque, apesar do papel segmentador, o rótulo jamais limitou a criação musical.

“Acho que quando a música é realmente boa, não tem problema nenhum em misturar, fica até mais atrativo”, conta Marlene Alves, de 55 anos, que trabalha como bancária e acompanha de perto a trajetória de Sá e Guarabyra há anos.

Não é só Marlene que fica atraída pela ‘mistura de música boa’. É cada vez mais comum a presença de jovens na plateia em shows de antigos conjuntos ou cantores. Com o público vem se renovando, é cada vez mais certo que a música não tem mesmo idade.

“Temos seguidores fiéis, que atravessaram conosco três gerações musicais, e trouxeram seus filhos e netos. Dessa forma vamos agregando, também, um público mais jovem que se cansou da mesmice sertaneja, e está à procura de algo mais”, finaliza.

(Karen Lemos - O Estado RJ)

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