
“O senhor pode, por favor, explicar por que fez esse filme?”. Foi assim que um jornalista do “Daily Mail” se dirigiu ao cineasta, após a exibição do seu novo trabalho no último Festival de Cannes. “Não tenho que me justificar”, replica, ríspido, von Trier. Mesmo com a resposta seca, o clima de desconforto permanece na sala da coletiva.
O estado psicológico em que o artista se encontra é refletido em sua obra. A frase aqui não poderia melhor definir o que se passou durante a concepção de “Anticristo”, o mais novo trabalho do polêmico Lars von Trier.
Durante a produção, o cineasta dinamarquês passava por um período difícil na sua vida, enfrentando uma depressão barra pesada. Com a sensibilidade aguçada, ‘Anticristo’ não poderia ficar imune da realidade de um universo sombrio que seu criador estava habitando.
É exatamente isso que faz de “Anticristo” o filme subversivo da vez. “Vaiado pelo público”, “Algumas pessoas da platéia se levantaram durante sua exibição”, “Cannes categorizou como ofensivo”, essas e outras frases do tipo foram as mais ouvidas durante seu lançamento. Os críticos mais ácidos mandaram o cineasta se tratar. “Seu criador certamente precisa de ajuda psiquiátrica”, disse o jornalista Christopher Tookey, do “Daily Mail”.
Claro que boa parte dos comentários fazem o papel do “empurrãozinho” na divulgação do filme. E funciona, viu? Quem não se lembra de “A Paixão de Cristo”, ou então, o mais recente “Rec”, que foram alavancados por um programa de publicidade, feita pela imprensa. Baseado na polêmica, os comentários geram a curiosidade do púbico que corre para as salas dos cinemas em unanimidade. Mal tendo consciência do que irá assistir, o telespetactador está mais preocupado em, dentro das rodinhas de amigos, estar interado daquele “filme que ta todo mundo comentando”.
A jogada de marketing é bem conhecida para quem sabe como se movimenta o mercado cinematográfico ou, no geral, o sistema capitalista. Mas onde há fumaça, há fogo. “Anticristo” é, antes do seu viés comercial, repugnante, nauseante e incômodo, assim mesmo como estão dizendo, acreditem.
Está do jeitinho que Lars von Trier gosta. O idelizador do Dogma 95 (movimento cinematográfico que dispensa maiores recursos para produção de um filme) se deleita com o desespero do público que assiste a uma bateria de cenas desagradáveis, e muitas vezes desnecessárias. Mas, se não fosse por esses exageros - que combinam muito com o estilo de von Trier - não seria von Trier, não teria a mínima graça. (ou desgraça, aqui no caso).
“Anticristo” é sua empreitada experimental no gênero terror. Quem procura monstros, fantasmas e sobressaltos nas poltronas vai se decepcionar. Não é disso que a produção do dinamarquês se trata. O horror aqui é psicológico, instaurado com suspense e claustrofobia.

Agora entendemos porque essa foi a válvula de escape do cineasta depressivo, que soube migrar seus piores demônios para dentro das telas, fazendo disso a sua terapia pessoal. Uma “cura” bem egoísta, já que todos os seus tormentos são passados para a platéia. Von Trier está pouco se lixando se o público vai lidar bem com a carga negativa de “Anticristo”. Para ele, basta ser bem sucedido no exorcismo de seus demônios, seja da forma que for.
Denso, “Anticristo” é recheado com um material nada digestível, inspirado nos pensamentos do cineasta perturbado pela doença. Bem diferente de trabalhos anteriores como “Dançando no Escuro” ou “Dogville" que, apesar da crítica social sempre presente, fazem uso de uma certa leveza e poesia para abordar temas pesados. A mais nova criação aqui, nada tem de poesia.
A começar pelo cartaz chamariz, que retrata uma das cenas chaves do filme. Os protagonistas (o ótimo Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, filha do compositor francês Serge Gainsbourg) aparecem fazendo sexo debaixo de uma grande árvore, ao redor de corpos ataúdes. O título provocador, “Anticristo”, está destacado em letras garranchadas na cor rosa. É um aviso prévio de que, o espectador está prestes a assistir algo nada convencional. E logo de cara, percebemos mesmo que aquilo não é realmente um filme convencional. Nos primeiros cinco minutos de exibição, nos deparamos com sexo explicito, que causa desconforto para os desavisados.
Bom, vamos para sua história. O filme retrata um casal que tem a vida transformada após a morte do único filho. O trágico acidente, que é o ponta pé inicial de toda a mudança nos personagens, é uma das cenas que melhor misturam tragédia com beleza. O casal transa enquanto o filho se joga da janela, embalado ao som da opéra de Händel. Toda rodada em câmera lenta, a sequência detalha sutilezas como gotas de água caindo e flocos de neve voando. Clichê, mas funciona muito bem dentro do contexto proposto pelo diretor.
Atormentada, a mãe da criança, uma escritora bem sucedida, será auxiliada pelo marido psiquiatra para tentar amenizar seu sentimento de culpa. O casal parte em busca de respostas e viajam até uma cabana abandonada no meio da floresta do Éden. O lugar se torna o antro das mais bizarras situações. São ilusões perturbadoras, bichos mortos, animais comento partes de seu próprio corpo, e por aí vai. Sequências horríveis que vão brotando enquanto as revelações da trama vão se desmiuçando.

“Anticristo” é, também, a junção do sexo com violência, explícita e gratuita, dois extremos que a todo o momento estão se unindo na trama. As passagens vão da mais brutal agressão física ao desejo sexual consumado logo na sequência. É a mistura do sangue com o prazer, da forma mais repulsiva possível. Cenas de masturbação, sexo explícito e tortura sexual pontuam o enredo de “Anticristo”. Só as cenas de gozo com sangue, e a automutilação de um clitóris, já bastariam. A platéia se torna o uníssono do incômodo.
Sem muitos propósitos, o filme encontra sua base em uma tese acadêmica que a personagem de Charlotte estava escrevendo antes da morte de seu primogênito. As pesquisas sobre feminicídio, ato de torturar mulheres muito frequente durante a Idade Média, e ainda presente nos costumes de países islâmicos na forma de punição, e no continente africano, onde algumas dessas práticas fazem parte da cultura local. Esse condutor da trama tenta justificar os atos agressivos da personagem, perseguida a todo o momento pela violência da sua própria natureza.
"Acho muito bom que as pessoas saiam do cinema com algum tipo de emoção", declarou em entrevista o realizador de “Anticristo”. E pode apostar nisso. Quanto ao título escolhido, e não justificado durante o filme, von Trier nada revela.
E não tente mesmo encontrar explicação. Isso é Lars vo Trier. É uma câmera na mão, sem amarrações no roteiro, sem preocupação estética, sem querer ser convencional, sem recursos. É apenas o desejo de filmar, de entrega, experimentação, ousadia, abuso.
(Karen Lemos - Portal Cinéfilo)